terça-feira, 31 de julho de 2018

ATENAS & DELFOS (Capítulo 3: "Onde a Morte Não Existe")

#3. ATENAS | Diário de Bordo (dia 2, parte II): “Nos templos gregos, a Morte não existe; a redenção da Matéria é feita apenas pela Beleza. Pode-se visitar dezenas, centenas de vezes a Grécia: a surpresa deixará de existir, a exaltação inicial diminuirá, mas o contacto visual com os seus monumentos será sempre uma sagração da Vida. Não importa, portanto, que eles não sejam vastos como os templos de Karnak ou altos como as pirâmides célebres. O Parthenon não é, efectivamente, grande”. Mas ali estava, majestático na sua lúcida simplicidade, por entre o fluxo de visitantes arrítmicos, tal como eu, curvos ao beija-mão da sua mítica arquitetura. Seria ele “mais belo quando estava intacto ou é mais belo agora, na nobreza romântica dos seus mármores partidos, na austera dignidade da sua mutilação?” (Ferreira de Castro). Para onde olhasse, tudo era penedia erodida; e contudo, tão completa em si mesma: cada destroço de fragmentação parecia preencher a cuba perfeita de uma posição obrigatória.

Em frente do Museu, entre o Parthenon, o Erechtheion e os Propileus, há centenas de mármores partidos, que se estendem sobre o grande rochedo. Eles emprestam à Acrópole, a certas horas do dia, o aspecto de depósito de material de construção. Amputados membros de templos desaparecidos, e até, de outros ainda existentes, não foi possível descobrir o lugar que ocupavam, outrora, no corpo arquitectónico. Faziam parte de sete ou oito famílias, cujos componentes se misturaram ao longo dos séculos e, num espaço apenas de trezentos metros, nunca mais os cônjuges, nunca mais irmão e irmão conseguiram juntar-se. Parece estarem à espera de que, após tantas pesquisas inúteis, o Acaso os reúna, revelando o seu parentesco; ou que olhos de arqueólogo distraído ou de menino inocente topem, de súbito, a face que se uniu, na antiguidade, à face de outra pedra”.

Também eu me procurava inteiro, olhando para a ausência amorosa como uma fenda no mármore dos meus templos sagrados. Talvez assim tivesse de ser. “Seleccionando os mármores dispersos na Acrópole e descobrindo, com longa paciência, o primitivo acasalamento das pedras, tornou-se possível reconstruir, quase completamente, e o soberbo templo. As colunas, formadas por blocos arredondados e sobrepostos, espécie de tambores que vão diminuindo de tamanho desde a base ao capitel, estão, na sua maioria, de pé, embora não haja nelas um só metro sem cicatriz”. Talvez assim fosse, na minha percebida ruína, de facto completo na íntegra. Talvez nenhuma Morte me assistisse senão a que quisesse evocar neste susto de sentir-me tão só comigo mesmo. Olhei em volta, compreendendo o espaço do Templo de Nike ao Teatro de Dionísio. Algo em mim, do que em mim me viera reconstruindo, juntando as peças da Acrópole interior, pedra sobre pedra, num esforço gradual e tentativo, repelia agora a Morte da rocha fria e insensível. Algo em mim, chamava agora a luz que espanta a sombra.

A ardência de cartografar Atenas pesava ainda mais do que a capacidade de fruir do seu aconchego e contudo, algo por dentro quebrava, algo por dentro serenava. Uma estranha forma de paz acariciava-me cada cicatriz: um cuidado matrístico, protetor, securizante. Respondi-lhe com um sorriso, e avancei do Erechtheion para a saída. Imenso era o céu e azul tão profundo. A meus pés, subitamente inversa de posições, Atenas chamava-me murmuramente pelo nome...



























Carlos Marinho

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