#6. ATENAS | Diário de Bordo (dia 3, final): Por todos os lados se cantava em Monastiraki. Renovado, feliz, cantava também. Atenas era minha, cada beco, cada esquina, e com ela, o tempo de toda a Beleza, a paz de me contentar comigo mesmo, sem medo, sem ansiedade, erguendo o Assyrtiko em riste, num brinde à minha prazenteira auto-suficiência. Repetindo com Wilde, “O suficiente é tão satisfatório como um grande banquete”: sozinho não mais. Esta era a bênção do Tempo, lição do passado amando o presente. E então recordei Einstein: “[W]hen we survey our lives and endeavors we soon observe that almost the whole of our actions and desires are bound up with the existence of other human beings. (…) We eat food that others have grown, wear clothes that others have made, live in houses that others have built. The greater part of our knowledge and beliefs has been communicated to us by other people through the medium of a language which others have created. (…) The individual, if left alone from birth would remain primitive and beast-like in his thoughts and feelings to a degree that we can hardly conceive. The individual is what he is and has the significance that he has not so much in virtue of his individuality, but rather as a member of a great human society, which directs his material and spiritual existence from the cradle to the grave”. Só aí me ocorreu: não foram nunca os amontoados ruinosos de pedra partout que mais fundo tangeram as harpas da minha sensibilidade estética: a rocha fria não comove na sua catatonia inútil – foi antes a dureza deste povo, “o povo que maior interesse oferece à biografia da Humanidade” (Ferreira de Castro), suficientemente doce e matrístico para preservar do vórtice da pós-modernidade, o legado de tudo o que ficou da civilização primeira: com a vigilância da premeditação cuidadosa, como o relaxamento do mais generoso acaso.
Em redondo, heróica e suja, sagrado promontório da Civilização, a Atenas dos contrastes era também, a Atenas do equilíbrio entre o divino e o pagão em mim, onde a ordem e o caos crescem às turras, caindo de amores um pelo outro, a cama e o altar onde me sagrava completo. Atenas floresce às mãos do seu povo. De pedra, mas cada pedra com a sensibilidade invisível de uma frágil flor. Povo que a cultiva preservando a Beleza, detentor da sabedoria deste necessário equilíbrio. Como do espanto chocado passei ao silencioso aplauso de um coração acelerado de emoção. Monastiraki, que me deste comida farta e vinhos caros, que mais poderia eu desejar neste contentamento de bastar-me?E foi aí, por entre a espuma da multidão, sem nada que o fizesse prever, recolhido aos viveiros da minha autossuficiência, em mim repleto de pólo a pólo, circulado de vinho e juventude, aplaudindo a derrocada de toda e qualquer dependência que me escravizasse ao exterior, quando nenhuma necessidade urgia já suprir-se nas mãos de outrem, que um inesperado grãozinho de areia se lançou à concha fechada do meu peito, tomando forma a súbita Afrodite de uma surpresa, e de uma troca de olhares ao primeiro cumprimento, de repente se gerou a meu lado, segurando um copo rubro de Mavrodafni entre dedos, a pérola de uma deliciosa companhia humana. Sombra fugidia, pois então, e neste encontro fora d’horas, toda a saudade de duas águias extraviadas do omphalos. Mas a vida era perfeita nesta agridoce assimetria entre o desejado e o obtido, definindo-se tão menos pelo que se quer ter, do que por aquilo que estamos dispostos a renunciar.
Com Yalom, ciente de que “a chave para viver bem é, primeiro, desejar aquilo que é necessário e, depois, amar aquilo que é desejado”, transformando o “assim aconteceu” em “assim o desejei”, aceitei-lhe o noctâmbulo convite para trepar ao monte de Areopago, onde nos aninhámos a conversar, enquanto mãos invisíveis coroavam a Acrópole com um argênteo Δάφνινο στεφάνι feito de lua grande. E as horas passavam de mansinho sobre Atenas, de confidência em confidência, ao ouvido de Virgo e Norma e Hydra, até cair a última badalada da meia-noite e de novo voltarmos ao passadiço de Apostolou Pavlou, onde alguém viera debruçar-se à janela para dedilhar um bouzouki. Ali sentei, de pestanas húmidas, cruzado desta estranheza tão a propósito de tudo, na experiência extraordinária de me sentir girar nas contas da Vida.
De volta ao hotel, sorria ao tanto que ficara por dizer. “E precisamos tanto de conversar! Precisávamos de fazer uma viagem de comboio, daquelas que se faziam antigamente, muito longas, em que se gastavam treze horas num percurso de trezentos quilómetros. Mas nem isso chegava… Precisávamos, sim, era de ir de comboio através de toda a Europa, de toda a Ásia, até Pequim ou Vladivostok. E pernoitar em todas as estalagens que já não existem. Ficarmos a conversar ao canto do fogo, durante a noite; e viajar continuamente durante o dia…” (David Mourão-Ferreira). Pois então, adeus. Duas águias, dizia o sonho, seguindo caminhos opostos. Mas não: ambos sabíamos que a realidade era outra. Meu amor por vir, não somos águias, não somos aves, não sabemos voar. O oráculo da esperança fala de outras convergências.
E chegado a Braga, sentindo já a falta do tanto céu que clareava Atenas, tornei para a janela aberta, onde à chuva, a fantasia punha ainda uma longínqua Acrópole hirta e lúcida a horizonte, lendo e relendo os versos de Rilke:
Em redondo, heróica e suja, sagrado promontório da Civilização, a Atenas dos contrastes era também, a Atenas do equilíbrio entre o divino e o pagão em mim, onde a ordem e o caos crescem às turras, caindo de amores um pelo outro, a cama e o altar onde me sagrava completo. Atenas floresce às mãos do seu povo. De pedra, mas cada pedra com a sensibilidade invisível de uma frágil flor. Povo que a cultiva preservando a Beleza, detentor da sabedoria deste necessário equilíbrio. Como do espanto chocado passei ao silencioso aplauso de um coração acelerado de emoção. Monastiraki, que me deste comida farta e vinhos caros, que mais poderia eu desejar neste contentamento de bastar-me?E foi aí, por entre a espuma da multidão, sem nada que o fizesse prever, recolhido aos viveiros da minha autossuficiência, em mim repleto de pólo a pólo, circulado de vinho e juventude, aplaudindo a derrocada de toda e qualquer dependência que me escravizasse ao exterior, quando nenhuma necessidade urgia já suprir-se nas mãos de outrem, que um inesperado grãozinho de areia se lançou à concha fechada do meu peito, tomando forma a súbita Afrodite de uma surpresa, e de uma troca de olhares ao primeiro cumprimento, de repente se gerou a meu lado, segurando um copo rubro de Mavrodafni entre dedos, a pérola de uma deliciosa companhia humana. Sombra fugidia, pois então, e neste encontro fora d’horas, toda a saudade de duas águias extraviadas do omphalos. Mas a vida era perfeita nesta agridoce assimetria entre o desejado e o obtido, definindo-se tão menos pelo que se quer ter, do que por aquilo que estamos dispostos a renunciar.
Com Yalom, ciente de que “a chave para viver bem é, primeiro, desejar aquilo que é necessário e, depois, amar aquilo que é desejado”, transformando o “assim aconteceu” em “assim o desejei”, aceitei-lhe o noctâmbulo convite para trepar ao monte de Areopago, onde nos aninhámos a conversar, enquanto mãos invisíveis coroavam a Acrópole com um argênteo Δάφνινο στεφάνι feito de lua grande. E as horas passavam de mansinho sobre Atenas, de confidência em confidência, ao ouvido de Virgo e Norma e Hydra, até cair a última badalada da meia-noite e de novo voltarmos ao passadiço de Apostolou Pavlou, onde alguém viera debruçar-se à janela para dedilhar um bouzouki. Ali sentei, de pestanas húmidas, cruzado desta estranheza tão a propósito de tudo, na experiência extraordinária de me sentir girar nas contas da Vida.
De volta ao hotel, sorria ao tanto que ficara por dizer. “E precisamos tanto de conversar! Precisávamos de fazer uma viagem de comboio, daquelas que se faziam antigamente, muito longas, em que se gastavam treze horas num percurso de trezentos quilómetros. Mas nem isso chegava… Precisávamos, sim, era de ir de comboio através de toda a Europa, de toda a Ásia, até Pequim ou Vladivostok. E pernoitar em todas as estalagens que já não existem. Ficarmos a conversar ao canto do fogo, durante a noite; e viajar continuamente durante o dia…” (David Mourão-Ferreira). Pois então, adeus. Duas águias, dizia o sonho, seguindo caminhos opostos. Mas não: ambos sabíamos que a realidade era outra. Meu amor por vir, não somos águias, não somos aves, não sabemos voar. O oráculo da esperança fala de outras convergências.
E chegado a Braga, sentindo já a falta do tanto céu que clareava Atenas, tornei para a janela aberta, onde à chuva, a fantasia punha ainda uma longínqua Acrópole hirta e lúcida a horizonte, lendo e relendo os versos de Rilke:
“You who never arrived
in my arms, Beloved, who were lost
from the start,
I don't even know what songs
would please you. I have given up trying
to recognize you in the surging wave of
the next moment. All the immense
images in me – the far-off, deeply-felt
landscape, cities, towers, and bridges, and
unsuspected turns in the path,
and those powerful lands that were once
pulsing with the life of the gods –
all rise within me to mean
you, who forever elude me.
You, Beloved, who are all
the gardens I have ever gazed at,
longing. An open window
in a country house –, and you almost
stepped out, pensive, to meet me.
Streets that I chanced upon,-
you had just walked down them and vanished.
And sometimes, in a shop, the mirrors
were still dizzy with your presence and,
startled, gave back my too-sudden image.
Who knows? Perhaps the same
bird echoed through both of us
yesterday, separate, in the evening...”.
Carlos Marinho
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