3: O Rapaz de Malatya (2ª.
Parte)
I – Lépido e estrepitoso,
à la cowboy dos vales capadócios, aterrou de um pincho para
dentro do shuttle, aquele que viria a
conhecer como o rapaz de Malatya. Estacado no assento, fixei-o pelas
intermitências de um pestanejar atónito, sem que se me tornasse imediatamente
compreensível o motivo do tanto rumor que espumava em torno. Também ele na casa
dos trinta, atlético e trigueiro, vinha de camisa azul-bebé abrindo ao peito
espadaúdo o desmaiado fole de uma janela em ‘S’ estreito; e nas mãos calejadas segurava
uma checklist que percorria de alto a baixo pelo negrume dos Ray Ban, firmemente aparelhados à afilada sela do
nariz. Havia nele a astúcia-zweifel
da águia – um olho no peixe, o outro no gato – mas também a melancólica
ciência de saber que quanto mais se eleva
menos visível se torna e é castigado com a solidão da alma (Stendhal). Já
antes aqui estivera, detido nas barreiras deste fremente reconhecê-lo. Lembrei-me
das confissões que a Contesse fizera no meu
«Entreatos»: “aquele
andante suave e lamentoso tomou-me de assalto. O poder de penetração era tal
que me subjugava, enquanto a música parecia falar-me, sussurrando aos ouvidos:
Pauvre enfant, dans un jour d'effroi/L'amour a-t-il semé ta vie?”. Ao cabo
de um impreciso número de verificações, apontou para mim e para outro
passageiro o dardo do indicador resoluto, pedindo em inglês nervoso que o
seguíssemos para o interior de outro shuttle.
Terá sido a sua brusquidão de modos, quase em revolta pela própria
trapalhonice, que me fez chegar impressões de uma vulnerabilidade insegura;
como a querer ocultar-se atrás de máscaras. Nesse momento, senti que me apiedava das manhas
istambuliotas, e um sorriso triste animou-me os lábios. Quando trepei a bordo, o novo grupo recebeu-me no elástico de
uma malha de sorrisos: Karen, a sexagenária da Califórnia, que de antemão
comprara cinco anos de carreira laboral para que pudesse agora gozar de uma
muito agradável reforma itinerante, Tian Chaochen, o criativo hipster com quem haveria de disputar, em
comédia, o formato de uma das rochas do Pashabagi (ele dela dizendo ser um
camelo, e eu um caracol); havia ainda um amoroso casal chinês de filho ao colo, um muito
cúmplice casal italiano rondando os seus 40’s, irmão e irmã, e respectivos
consortes, todos de origem árabe, um casal da Cidade do Cabo e, por último, uma
senhora de gracioso envelhecer, também ela provinda da África do Sul. Assim que
nos acomodámos, Hilal apresentou-se como guia da nossa tour pelo Norte da Capadócia, e adiantou-se ao motorista num
simpático reconhecimento da sua presença ao volante. Seguiram-se as explicações
acerca da geografia capadócia, atribuída – dizia Hilal num afã professoral – à
ação combinada da atividade vulcânica de há 10 milhões de anos, e da erosão provocada
pela água e pelo vento, esta última acentuada por areias resultantes da desagregação das rochas menos compactas. Daí, teimava ele, as
estranhas formas rochosas a que haviam dado o nome de chaminés-de-fada – grandes
colunas naturais em forma cónica que sustinham no seu topo um bloco de rocha
maior, onde permaneceria até a erosão não mais lhe permitir sustentáculo. Olhando
em volta, à medida que o shuttle avançava
pela estrada, lembrei-me dos versos de Flecker: “Não passes por baixo, ó Caravana, ou não passes cantando / Ouviste
aquele silêncio em que os pássaros estavam mortos / e, contudo, qualquer coisa
piava como um pássaro?”; desceu-me em arrepio pelo corpo um susto de frio
ao imaginar a lenta espera de cada um destes pacientes Atlas estáticos, erguidos
no cavo silêncio dos descampados – a lenta, penosa e consumptiva espera até à
queda derradeira. A primeira paragem ocorreu a poucos quilómetros, quando o autocarro
estacionou numa berma do vale de Göreme, deitando para algumas rudimentares
construções escavadas na rocha macia. Uma tenda de souvenirs, uma roulotte
de merendas, e dois camelos ornamentados para que sobre eles se fizesse pose,
ofereciam ao viajante o que bastasse para um bom flash fotográfico de puro deleite turístico. Esta, continuava o nosso guia, fora
terra dominada pelos Hittitas e mais tarde conquistada por Alexandre o Grande;
hoje, o que a tornava mais popular eram os vestígios deixados pelos
primeiros cristãos que a haviam habitado, e as suas igrejas decoradas com
frescos. “Tourists not always respect these
sites” condenava ele “Sometimes we
find their names scribbled on rocks. All sorts of foreing names,
like Carlos”, e tornou para
mim uma risada trocista, despontando a animação entre todos os presentes. “I’m from Portugal” apressei-me a
corrigir com fingida consternação despeitada. Não seria a primeira vez que Hilal
tomaria liberdades para troçar de mim; no Vale de Baglidere (ou Love Valley,
como chamado pelos turistas), lançou-se a bater-me no ombro, como o faria um
irmão mais velho, dizendo, entre gargalhadas, “I’ll punch you all afternoon”. Prosseguiram as explicações: esta era
também terra de eremitas, que na altura formavam um grupo social importante, embora
nada tivessem que ver com a vida monástica – em extrema reclusão solitária, recebiam tudo quanto lhes constituísse
necessidade, por parte da população. Foi no seu encalço que tornámos à estrada,
até ao Open Air Museum, a cerca de 1,5km da localidade de Göreme, no cruzamento
para Ortahisar. Aqui, contava Hilal, nascera São Jorge, um dos santos mais
venerados do catolicismo, imortalizado na lenda em que triunfava sobre o dragão do Mal; contrário porém, à sabedoria popular, informou-nos sorrindo que não fora efectivamente São Jorge a derrotar a fogosa criatura, mas sim um soldado menor, também parte do exército do
imperador Diocleciano, embora muito menos glamoroso do que o primeiro. No Open Air,
as estruturas eram combinadas sob um museu, e no número dos seus principais
edifícios e estruturas, visitámos o Mosteiro Rahibeler, a Capela de São
Basileos, a Igreja Elmali, a Capela de Santa Bárbara, a Igreja Yilani, uma
Copa-Cozinha e Sala de jantar, a Igreja Karanlik, a Capela de Santa Catarina e a
Igreja Çarikli. Depois de batermos a pé toda a vastidão do recinto, viemos
recolher-nos à sombra do shuttle.
Karen, a quem logo identifiquei esse mongoose
instinct de que Kipling falava, entretinha-se a conversar com Hilal. O jovem
ia, aos poucos, revelando mais de si, contando como em menino lhe desagradavam as
obrigatórias atividades de electrónica na escola; gostava era de ler, e sempre lera muito, apreciava os grandes pensadores alemães, como
Schopenhauer e Espinosa; o seu
modesto sonho era continuar a aperfeiçoar línguas para garantir maior
estabilidade financeira (“Chinese will
bring me great fortune – the future
is Chinese”). A simplicidade do relato foi
absolutamente comovente, e pôs-me no coração a saudosa memória de Yusuf e da
sua história: “Era uma vez um menino nascido em Mersin, que
a contragosto vendia fruta na mercearia do tio…”. Quando voltámos ao shuttle, girámos para Avanos, em
direcção ao restaurante, depois do que seguimos para uma visita guiada aos
interiores de uma olaria, cujos produtos, feitos em instalações
caseiros, ficavam a cargo de elementos de família. Aqui, no suave encosto de uma saleta de
visitas, a beberricar elma çayi, foi-nos
dado a assistir um exercício de moldagem em barro pelas mãos do elemento mais
novo da família de oleiros. Mais tarde, levar-nos-iam a percorrer os vários
andares da loja o que, para a esposa de um dos árabes, resultou em múltiplos e felizes
acréscimos à decoração doméstica. Voltámos à van, desta vez rumo a uma casa de tapetes. Durante o trajecto, Hilal
explicou-nos que “a long time ago”,
as raparigas eram escolhidas pelas mães dos pretendentes em função dos tapetes
que bordassem, por forma a perceber até que ponto a paciência lhes faria
elogio. “Because the most important thing in a marriage” rematou ele,
sorridente “It’s patience”. A
incursão pela loja de tapetes em Beysehir foi extensa e cansativa; atiraram-nos
aos pés todo o tipo de produções: os hali,
os kilims, os cicims e os sumaks, e
entre um e outro gole de um renovado chá de maçã, lá fui tornando para Tian Chaochen um solidário revirar de olhos entediados...
II – Perto das 17h,
exaustos da viagem, regressávamos ao shuttle;
Hilal aproveitou para elogiar a competência do motorista, dizendo “I love this man”. Do assento fronteiro,
cofiando a patriarcal barbicha cinzenta, o árabe inclinou-se para diante, exclamando
sorridente num inglês torto: “I can’t say
love this man, because man love only the woman”. Hilal assentiu num acesso
de mesuras apologéticas, e sondou de olhos postos em mim que alternativa
poderia utilizar. Acudiu-me Alfred Douglas, e o seu a love that dare not speak its name, e de um inventário de capital
linguístico apropriado ao decoro islâmico, propus o verbo «to admire». Meneando a
cabeça em sinal de apoio, Hilal apressou-se a corrigir a penalização, e piscou-me
o olho em gesto de agradecimento. Sorri interiormente. Na delícia e na tristeza
dessa íntima partilha. Humano que se veja proibido de ser em liberdade, a quem
se lhe dissuada – passiva ou agressivamente – a necessidade de ampliação pessoal,
é humano que de certo acabará deprimido nos engasgos de uma implosão. Uma
educação que substitui os potenciais dos alunos pelo conformismo à
coletividade, que incentiva a que o valor que nos atribuamos radique num
parâmetro imposto desde o exterior, regulado por terceiros, não poderia ter
outro efeito. Entendê-lo, no meu ponto de vista, reclama o uso de uma abordagem
crítica por parte da epistemologia moderna, e um ativismo omnipresente em
militância a favor da liberdade – sobretudo a liberdade rúbida e ruidosa,
canhão à solta, numa chinfrineira de Carnaval rua afora, a desoras da decência,
a bater tachos e tacões, arrastando garridas
traînes de purpurina e de missangas, a que se edifique na celebração do que
é honesto e coerente, a delatora de tóxicas invisibilidades, a que se sagre
roteiro de humanização, que nos acorde a todos/as deste coma lúcido de
passividade. Ia neste ponto das minhas elocubrações, quando Hilal se voltou
para continuar o seu self-disclosure.
Que vinha da Malatya, uma cidade
do sudeste turco, parte da Região da Anatólia Oriental, regada por afluentes
do rio Eufrates. As suas terras, prosseguiu, eram famosas pelos
seus damascos (também chamados de apricó, abricó, abricô, abricoque, abricote, alberge, albricoque, alpece, alperce e alperche), comestíveis ao natural e internacionalmente
consumidos como fruta seca e em doces. O meu sorriso alargava ao vê-lo
gesticular o corpo recurvo sobre nós, em pose de quem instrui, na ânsia de mostrar
os tantos conhecimentos a quem o validasse, ao decote flutuante da camisa
cobrindo e destapando o peito, à graciosidade felina dos olhos penetrantes. Havia algo de impronunciavelmente genial na contracurva da sua maçã-de-Adão. Pela
oblíqua, o sol entrava-me a rodos por entre os arvoredos da imaginação; ali,
podia vê-lo trepar escadas à apanha da fruta mais madura, envolvendo os dedos polpudos
em torno das bochechas firmes e arredondadas de cada damasco; e enquanto
discorria, todo bazófias de sabedor, sobre as características, informações nutricionais
e benefícios à saúde dos seus “beautiful
apricots”, os meus olhos passavam em revista as letras de Aciman: “The Latin word was praecoquum, from pre-coquere,
pre-cook, to ripen early, as in ‘precocious,' meaning premature. "The Byzantines borrowed praecox, and it became prekokkia or
berikokki, which is finally how the Arabs must have inherited it as al-birquq", e demorando nele um sorriso
lânguido de entretido com a charada, “All
I kept thinking of was apricock precock, precock apricock”. Pelas
janelas, dilatava-se-me aos olhos o
Vale da Imaginação inteiro, também chamado Devrent ou Vale Cor de Rosa, com as suas fálicas estruturas de pedra,
evocativas das ilustrações de Ian Beck em «The Joy of Gay Sex», a que se seguiu
uma rápida paragem por Baglidere Vale e, por último, o vale dos Monges, na Estrada para Zelve.
O nome vem de alguns cones escavados em tufos calcários que ali se destacam; alguns
deles separam-se noutros mais pequenos nas secções superiores, onde, outrora,
os estilitas e os eremitas viviam. Este vale, qualquer guia o dirá, contém algumas
das mais fascinantes chaminés-de-fadas da Capadócia, com cumes de
rocha duplos e triplos. De volta à estrada, ficaram para trás as fantasias de Devrent,
e rumava agora de regresso ao Kaya. A despedida foi-me deliciosamente tristonha.
À saída do shuttle, depois de aliciar
cada tripulante com uma visita a Portugal, despedi-me de Hilal com um abraço, e
segui para o hotel. O mais que se passou seguiu em rapidez de bala; um novo
autocarro entregou-me a Kayseri, de onde segui para Gökçen e daqui, para
Istambul. Depois dos abraços de Sedef e Mesut, ao cair no sofá, adormeci de
sorriso aberto, sem sonho mais vívido do que o dos últimos dias…
Quando cheguei a Portugal, ao
contrário do que sucedera pós-Grécia, nenhuma nostalgia maior me abateu o espírito.
Ao invés, trazia na boca um pouco de Sezen Aksu: “Seninle baharı kutlamaya geliyorum / Başımı omzuna yaslamaya /
Hayata yeniden başlamaya / Bağında,
bahçende, pınarlarında / İçimi
yıkamaya geliyorum…”. Eu viera para celebrar
a primavera com a vida, e queria continuar a reflorescer. Pela invocação à
transcendência, pela promessa de emancipação, pela ruga do cógito perplexo,
pela pirraça da criança sonhadora, pela cegueira do homem ambicioso. Vivo do
arrepio da surpresa, do súbito picar da agulha, desse ‘não haver o que o
fizesse previsto’. Vivo de me querer trapézios para alturas maiores, além-mapas.
Vivo de avançar como for, no simples e no superlativo, na olímpica braveza que
as condicionantes do medo e do desânimo despertem em mim, até perceber a
invisibilidade dos vitrais celestes, essa que por indeclarada lei ou fixo
dispositivo me imponha à altura a limitação de uma alfândega. Lúcido e
protestante: é assim que sou, é assim eu me quero. Para então erguer o queixo,
esporear o cavalo, e irromper futuro adentro, rumo ao que Sancho perceba moinho
e Quixote perceba gigante. Não mais um São Jorge de falsas glórias, não mais um
eremita recolhido às chaminés-de-fadas, mas um herói de mim mesmo, decidido a deixar
para trás os brinquedos da imaturidade, soltar os balões da idealização céu
afora, como o fizera a desvairada Baylem pelas ruas de Kadıköy, no seu estupor
de alcoólica felicidade, ageless e
terrestre, de pés no chão, pois que a vida começa aos 33, e vejo agora todos os
meus sonhos em fogo, de crista inchada, cobrindo como aos balões da Capadócia, o
horizonte inteiro do meu futuro mais bonito...
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