I – Pelos Lares dos Meus Amigos (1ª. Parte)
I – Ao cair da tarde do
passado dia 7 de Setembro, dei por mim languidamente recostado no assento de um
avião da Turkish Airlines, planando de sorriso aberto por sobre o azul-profundo
das águas internacionais do Çanakkale Boğazı, rumo às glórias e aos
esplendores da antiquíssima cidade que Napoleão tomaria para capital se houvesse um só país no mundo – Istambul,
a remota Bizâncio, a velha Constantinopla,
a Metrópole do Esplendor, colorida e pitoresca,
habitada há, pelo menos, 5000 anos, a Porta
da Felicidade que se me infiltrara no imaginário menino desde a leitura d’«Um
Crime no Expresso do Oriente», e que a partir de 2011, no contexto da folia
social académica, se retonificaria mais seriamente pela mão das amizades turcas
que estabeleci em contacto com outros Erasmus. Desta mística cidade de sonho,
sabia-a apenas ocupante simultânea de dois continentes, como se das margens
do estreito do Bósforo às do norte do mar de Mármara, quisesse vir vincar
a importância da integração no uno; depois do contraste de Atenas, e “do equilíbrio entre o divino e o pagão em
mim”, semelhante ideia concentrou-se de grande significado, e foi assim que
da janelinha do avião em curso, me fugiu o sangue aos cofres do coração quando
principiei a divisar as ribanceiras dessa que os gregos chamaram, durante a
Idade Média, Vasilevousa Poli, a “Rainha
das Cidades”. Para 7 dias em solo turco, concentrei a bagagem em
dois robustos backpacks, e no
interior do mais pequeno, um guia de viagem por Melissa Shales, entretelado de
mapas, referências e códigos sobre os quais, em boa verdade, pouco demorara a
vista. Esta atitude nada tinha de impremeditado; com efeito, decidira
lucidamente contrariar a abordagem ordenada e metódica que soía seguir na
preparação de cada viagem, para ter-me desprevenido e aberto à surpresa. Semelhante
fora o vívido conselho da minha amiga Floriane Cally, que em finais de
Fevereiro último, surpreendera de visita pour
faire le Portugal antes de tornar a Inglaterra; estávamos amesendados no
pátio da Rota do Chá, em plena Miguel Bombarda, e por entre lentos goles de um Matcha
gelado, aproveitei o ensejo para lhe dizer o quanto me amedrontava subaproveitar
a ida à Grécia, por então ainda a descobrir (“A Atenas que em tão pouco tempo tão cruelmente me impunha descobrir e
possuir inteira”). Calma e descontraída, encorajou-me a aceitar essa
aventureira impreparação como estratégia para melhor fruir do presente. Não pude
aplicá-lo a Atenas, mas decidi fazê-lo em Istambul. Floriane, Floriane, ma chère,
minha querida, o tanto que te devo…
II – Aterrei no labiríntico Atatürk
a dez ou quinze minutos das sete, e sem fio-de-Ariadne que me valesse à
desorientação natural, acabei batido de impaciência calcorreando o aeroporto de
trás para a frente, num vaivém de passos aracnídeos, alternando sucessivos culs-de-sac com seguranças deploravelmente
ineficazes na assistência em inglês; ao cabo de um impreciso número de minutos,
muitos mais do que os que desejaria admitir se terem transcorrido, cheguei
palpitante, num prolongado suspiro de alívio, ao amplexo do meu amigo e parceiro
de artes, o cipriota Umur Güven, postado do lado de lá das arrivals, com um cartaz em mãos para que nele lesse e risse: «O
Pirralho». Era este o tipo de cómica pilhéria a que Umur me habituara desde os
primórdios da nossa relação, quando o conheci no penúltimo comboio de São Bento
para Braga, e de partilha em partilha, ao longo dos restantes quinze dias da
sua vinda a Portugal, nos unimos para trazer ao Estúdio 22 a memorável «Suficiente
Solidão». Desde a feliz ocorrência, já muito caminho havíamos feito; na
verdade, o último encontro datava-nos da minha visita a Londres, em Julho do
ano transacto, como resposta ao seu convite para um getaway de fim-de-semana; pouco havia mudado nele, exceto talvez um
maior cansaço sobre a aparência e uma maior dureza de feições, sem dúvida atribuíveis
ao exigente trabalho que agora conduz no Cerrahpaşa Medical Faculty English
Programme. De Atatürk, já noite, apanhámos o metro para o vasto e cosmopolita
distrito de Kadıköy, antigamente designado por Calcedónia ou Chalkedon. Aqui,
encabeçando uma fileira de espaços comerciais desde o extremo norte da animada
Karakolhane, está agora para arrendar um estreito mas cómodo apartamento abaixo
do nível da rua; foi aqui que até há poucos dias, a minha amiga Sedef Çelik e o
namorado Mesut Güneş me anfitrionaram na parte asiática de Istambul por 5
noites. Tendo Umur por timoneiro, segui ao longo de estreitos arruamentos à
procura do número 101. Se inclinados sobre o gradeamento externo das janelas,
passando o micro-perfurado da rede que lhes encaixilha as vidraças, qualquer
par de olhos poderá espreitar por singelos cortinados de linho branco, para o
interior de um moderno ninho amoroso, essencialmente decorado a mão feminina,
ajoujado de souvenirs e de bugigangas
várias. À medida que descíamos a curva de escadas pela escuridão do prédio,
percebi-me na antecâmara de uma inescapável necessidade: refamiliarizar a
amizade cujo contacto presencial descontinuara faziam já 7 anos. Em pouco
tempo, porém, amorosamente apertado nos braços da minha risonha anfitriã para
lhe beijar as adoráveis covinhas, vi dissolver, já seguro, todos os lúgubres
cuidados que me confrangiam o peito. Por seu turno, das nuvens pálidas
baforadas ao cigarro eletrónico, Mesut veio cumprimentar-me num caloroso handshake, exortando a que lhe tomasse a
casa como à minha própria. Mas de certo que incurialmente lhe estimei as cortesias, pois que ao avançar
do hall de entrada para pousar os backpacks no tapetão da sala, um susto
de três vozes alarmistas me apostrofou em uníssono: «Tira os sapatos!». Estremeci, embaraçado por infringir a etiqueta
islâmica, girei nos calcanhares, sentindo-me corar de pólo a pólo; depois, gaguejando
a minha mais esforçada apologética, apressei-me a ficar em meias. Não lhes
tardaram as simpatias a deslaçar-me o nó do constrangimento, e entre risos
soltos, gozando das mesuras da sua mais solícita hospitalidade, sentámos para uma
adorável conversa por entre as almofadinhas do sofá. Uma hora mais tarde, depois
de desfiar longos rosários de memórias, voltámos a Karakolhane para jantar um
farto wrap de kebab e um copo fresco de ayran
espumoso. Fomos depois a um dos
múltiplos bares da rua, a essa hora percorrida pela ridente juventude noctívaga,
para alguns goles adocicados de Hoegaarden;
íamos lançados na revisitação de memórias, gracejando nostalgicamente sobre
este e aquele episódio da nossa história conjunta, quando no atirar de uma
gargalhada forte, o pescoço se me inclinou para o alto e de pronto interrompi a
conversa para admirar ao edifício a inesperada ausência de telhado. Aturdido
pela subitez do meu olhar espavorido, Mesut franziu o sobrolho e Sedef
apressou-se a explicar entre sorrisos: “Ele
é assim – ele é poeta” (nessa noite e nos dias que se lhe seguiram, a frase
tornar-se-ia numa das mais cómicas boutades
a meu respeito). Já fim-de-semana, a noite prosseguiu na correnteza da mesma
relaxada disposição, até Umur fazer a sua despedida de volta à Istambul
europeia. Regressados ao 101 de Karakolhane, para renovar brindes à amizade,
deram-me Sedef e Mesut a provar uma das suas muito orgulhosas produções de
cerveja caseira, abrindo espaço para que nos reuníssemos à viola a cantar Sezen
Aksu e Yıldız Tilbe, num hino ao nosso feliz reencontro. Do riso à lágrima, o serão
musical prolongou-se até perto das 4 da manhã, altura em que o casal, fazendo
as suas despedidas, se recolheu ao quarto, e me deixou acomodado ao sofá, já
pesado de sono e de cerveja, sentindo o peito quente de muita comoção. Talvez
tenha compensado, julguei de mim para mim, seguir o conselho da querida temerária
Floriane. Cheguei ao queixo o lençol que Sedef me deixara dobrado sobre o braço
do sofá e olhei pela janela aberta para o empedrado da rua, então traçado de
transeuntes a quem só via a sola dos sapatos. Sorri nas minhas considerações. "A vida do outro, a casa do outro, o coração
do outro... são todos templos sagrados que se pede licença para entrar. Licença
essa, concedida depois de instalada a confiança, o carinho, a verdade”.
Tornei então para o amontoado de sapatos à entrada, e enquanto escorregava para
o sono, sorri repetindo até adormecer: “Solo
sagrado se pisa descalço. Solo sagrado se pisa descalço. Solo sagrado se pisa
descalço. Solo sagrado se pisa descal…"[1].
III – Era meio-dia em
Istambul oriental quando pelas frinchas da gelosia o tímido sol de sábado me veio
descobrir a pestanejar de ensonado. Mesut, soube-o então, despertava apenas depois
do café caseiro; como tal, esperámo-lo saciado, já em animada cavaqueira, para
enfim sair e entestarmos um bom kahvaltı
por Karakolhane. Era queijo, era salada, simit,
batatas e ovo, chocolate, e mel, e pekmez
com tahine, e azeitonas, e chá, e o
famoso sucuklu yumurta (ovos com
‘chouriço turco’) – o tabuleiro, tapete mágico em voo alto, estendia-se para lá
da Dimensão, e nós com ele, entre um e outro Parliament, rolando altissonoras
interjeições de regozijo, entretinhamo-nos a conversar sobre todas as
deliciosas ninharias da vida ordinária em Istambul. Ali, entre um gole de türk çayi
e uma folha de queijo embebida em mel, fiz os planos para o dia: cruzar o
Bósforo, partir à descoberta de Sultanahmet, em Istambul europeia, à caça do
Grande Bazar, de Haghia Sophia, da Mesquita Azul, e do Palácio Topkapi. Despedi-me
aos abraços de Sedef e Mesut, meti cantante por uma das vielas rumo ao cais de Kadıköy,
disposto a viver toda a cidade, mas numa imprecedente lassidão de movimentos,
sem os apressados nervosismos da ansiedade, fruindo de cada passo, cada
fachada, cada relâmpago de gato cruzando a rua, esbarrigado pela gula que me atirara,
de beiços relambidos, ao escândalo gastronómico do pequeno-almoço em
Karakolhane, até avistar ao longe o magnífico Bósforo, em cujos canais – reza a
lenda grega – a bela Io terá nadado, transformada em vaca, para escapar à praga
de mosquitos enviada por Hera, com quem rivalizava o afeto de Zeus (daí,
supõe-se, o nome «Vadear da Vaca» atribuído a este elo de união entre o mar
Negro e o mar de Mármara, com um comprimento de aproximadamente 30 km, uma
largura de 550 a 3000 m, e uma profundidade variando de 36 a 124 m no
meio do estreito). Do céu cendrado começou então a tremer um friozinho de chuva
molha-tolos; vencendo multidões, cinco liras mais tarde, abriguei-me no convés
do ferry com o anorak azul zipado até ao pescoço. “A todas as horas, numerosos vapores fluviais abalam da cidade para a
viagem inesquecível. (…) O Bósforo
parece, por vezes, avenida líquida, comercial aqui, com o imenso tráfego da sua
navegação, e de residências acolá, tornadas românticas pelo ambiente poético
que domina tudo”(Ferreira de Castro). Encarei o horizonte, estirado da
ponta do assento, em palpitações turísticas de querer chegar mais depressa à
outra margem, pondo já Haghia Sophia na airosidade e beleza solitária dos
minaretes e cúpulas que divisava ao longe, por entre ramagens bizarras, para
depois compreender, num oco abatimento de desilusão, que o que via eram afinal adornos
de mesquitas menores. “Nesta cidade
despenteada e de venerando semblante, erguem-se, isoladamente, algumas
maravilhas da Arte, que contrastam, na sua soberbia, com a modéstia do todo. E
também existem alguns palácios, exteriormente medíocres, mas plectóricos de
riquezas de outrora. É o pretérito de sangue e oiro, a opolência dos grandes
senhores, que deu aura de fulgurância a uma cidade que, em realidade, e nunca a
teve colectivamente” (Ferreira de Castro). Com o tempo, aperceber-me-ia que
Istambul não só se não revela logo na sua inteireza, como frui de enrolar,
prestidigitar, emaranhar, baralhar, e fazer crer no que não é; como sói
acontecer a tantos impreparados turistas, também eu cairia nas suas armadilhas,
uma e outra vez. Já mais próximo do cais, o coração retumbava-se-me num badalo
de sangue excitado – podia ver agora, desde o porto de Eminönü, atirada para as
alturas do Sarayburnu (ou Cabo do Serralho), a egrégia arquitectura da Sagrada Sabedoria. Desembarcando em Karaköy,
já a chuva caía grossa, decidi furtar-me ao eléctrico, e avancei a pé para
Sultanahmet, subindo rumo ao Grande Bazar, pelo labirinto de pequenas ruelas, onde
inúmeras bancas se alinham para a venda de tapetes, roupas, legumes e souvenirs, à volta do mercado aberto. Passei
prédios enegrecidos e semiarruinados pelo tempo, sentindo a aflita populaça abrigar-se
da chuva por sob os estreitos beirais, seguindo jovens vendedores descalços que
se afadigavam a montar barricadas de madeira contra a enxurrada corrida rua
afora, e crianças alheias a toda a preocupada azáfama adulta, brincando a chapinhar
alegremente na correnteza da cheia. Não pude senão sorrir; sentia-me feliz. Mas
quando metros à frente cheguei à enorme vereda da Sultanahmet Istanbul Üniversitesi,
abateu-se sobre mim um cansaço tremendo, inexplicável, e uma vaga sensação de
estranheza, como se algo tivesse sido deslocado do seu elemento natural. Ocorreu-me,
sem perceber por quê, uma tirada da adaptação de «Centeio que Mata»: “Have you noticed how nothing is really what
it seems? The furniture is supposed to be Louis VI, but
is has been made in Birmingham; the paintings are supposed to be venetian, but they
were probable done in Chelsea last week. Nothing is solid or real. As if the
whole house and everything in it was some kind of gigantic fake”. Intrigado pelo puzzle deste súbito pensamento
intrusivo, acelerei o passo de regresso ao que ali me trouxera, e pus-me a
vaguear de trás para a frente, na exploração dos recessos. Pouco depois, passando
a Porta Beyazit, reconstruída após o terramoto de 1894, marcada com o tughra do sultão Abdül Hamit II e a
feliz certeza de que «Deus ama os comerciantes», avançava já pelas arcadas
coloridas do opulento Kapali Çarsi (o Grande Bazar), fundado em 1461 pelo
Sultão Mehmet II para ser o coração do comércio do Império, e deitei-me a
caminhar ao longo das suas numerosas montras iluminadas, absorvendo cores e
cheiros e movimentos, cruzado dos terlikçiler (fabricantes de chinelos), dos
aynacilar (fabricantes de chinelos), dos yorgancilar (fabricantes de colchas) e
dos kazazcilar (fabricantes de fio de seda). Ainda assim, cismático, apesar de
toda a distractiva estimulação, a críptica estranheza persistia. Cruzei
Sultahnamet até à praça quadrilonga do famigerado Hipódromo bizantino, tendo
por cabeça Santa Sofia, e à esquerda, a Sultanahmet Camii (Mesquita Azul). Tornei
para Ayasofya e para os seus seis majestosos minaretes, onde uma vez mais
descalcei para entrar. Já no interior, os olhos alastraram-se-me por 20 143 faiscantes
azulejos íznik azuis, em 70 estilos diferentes, enquanto os pés avançavam pelas
flores unidimensionais do alcatifado, numa lentidão de entusiasmo a emurchecer.
Com vagar, tornei aos jardins floridos que cercavam a Mesquita Azul. Esta obra,
dizia-me Melissa Shales, fora encomendada pelo sultão Ahmet I, com apenas 19
anos, e construída defronte a Haghia Sophia para enfatizar a supremacia do
Islão sobre o Bizâncio Cristão. Fraternizante com um orgulho que pisava aos pés
toda a mesquinhices da imposta soberba, olhei com desprezo para os 4 minaretes
da Mesquita Azul, e devolvi à Sagrada Sabedoria um sorriso cúmplice, protector.
Mas à sombra das florescências cor-de-rosa, a estranheza que me vinha obscurecendo
o peito, adensava-se agora num agastamento de tédio. Sentei-me num banquinho a descansar.
Ali estava eu, turista ocidentalíssimo, engrandecido de riquezas pelo privilégio
de um euro forte, a 3700 km de casa, deliciado na contemplação de alguns dos
mais belos exemplares da criação humana, senhor de mim e dos meus desejos, ainda
assim insatisfeito, a braços com um enigmático vazio interior que por dentro pisava
e repisava a mesma indecifrável linha da adaptação do «Centeio que Mata» – “As if the whole house and everything in it
was some kind of gigantic fake”. Ainda me animei até às portas de Topkapi, mas
não houve inspiração que incentivasse a mais. Espiralando em tautologias, tornei
a furtar-me ao eléctrico e lancei-me (jurando para nunca mais) na imprecatada descida
a pé desde o Hipódromo até ao cais de Eminönü. Foi ao refolhear o guia turístico
que algo na foto de Haghia Sophia me prendeu a atenção: surpresa das surpresas
contei-lhe apenas 4 e não 6 minaretes. A ruga da intriga não demorou a
diluir-se numa expressão de pasmo. Só aí me apercebi da vexatória tromperie que Istambul preparara para me
enganar: a Ayasofya que julgara ter visitado não era Ayasofya, mas sim a
Mesquita Azul. Apreciando uma em detrimento da outra, pusera-me a cidade a
adorar falsos deuses. Fechei o guia turístico com uma gargalhada. «Maldita
Istambul» rugi entre dentes.
"Viajei" contigo.
ResponderEliminarObrigada Carlos! Por tudo!