terça-feira, 31 de julho de 2018

ATENAS & DELFOS (Último Capítulo: "Um Minuto em Apostolou Pavlou")

#6. ATENAS | Diário de Bordo (dia 3, final): Por todos os lados se cantava em Monastiraki. Renovado, feliz, cantava também. Atenas era minha, cada beco, cada esquina, e com ela, o tempo de toda a Beleza, a paz de me contentar comigo mesmo, sem medo, sem ansiedade, erguendo o Assyrtiko em riste, num brinde à minha prazenteira auto-suficiência. Repetindo com Wilde, “O suficiente é tão satisfatório como um grande banquete”: sozinho não mais. Esta era a bênção do Tempo, lição do passado amando o presente. E então recordei Einstein: “[W]hen we survey our lives and endeavors we soon observe that almost the whole of our actions and desires are bound up with the existence of other human beings. (…) We eat food that others have grown, wear clothes that others have made, live in houses that others have built. The greater part of our knowledge and beliefs has been communicated to us by other people through the medium of a language which others have created. (…) The individual, if left alone from birth would remain primitive and beast-like in his thoughts and feelings to a degree that we can hardly conceive. The individual is what he is and has the significance that he has not so much in virtue of his individuality, but rather as a member of a great human society, which directs his material and spiritual existence from the cradle to the grave”. Só aí me ocorreu: não foram nunca os amontoados ruinosos de pedra partout que mais fundo tangeram as harpas da minha sensibilidade estética: a rocha fria não comove na sua catatonia inútil – foi antes a dureza deste povo, “o povo que maior interesse oferece à biografia da Humanidade” (Ferreira de Castro), suficientemente doce e matrístico para preservar do vórtice da pós-modernidade, o legado de tudo o que ficou da civilização primeira: com a vigilância da premeditação cuidadosa, como o relaxamento do mais generoso acaso.

Em redondo, heróica e suja, sagrado promontório da Civilização, a Atenas dos contrastes era também, a Atenas do equilíbrio entre o divino e o pagão em mim, onde a ordem e o caos crescem às turras, caindo de amores um pelo outro, a cama e o altar onde me sagrava completo. Atenas floresce às mãos do seu povo. De pedra, mas cada pedra com a sensibilidade invisível de uma frágil flor. Povo que a cultiva preservando a Beleza, detentor da sabedoria deste necessário equilíbrio. Como do espanto chocado passei ao silencioso aplauso de um coração acelerado de emoção. Monastiraki, que me deste comida farta e vinhos caros, que mais poderia eu desejar neste contentamento de bastar-me?E foi aí, por entre a espuma da multidão, sem nada que o fizesse prever, recolhido aos viveiros da minha autossuficiência, em mim repleto de pólo a pólo, circulado de vinho e juventude, aplaudindo a derrocada de toda e qualquer dependência que me escravizasse ao exterior, quando nenhuma necessidade urgia já suprir-se nas mãos de outrem, que um inesperado grãozinho de areia se lançou à concha fechada do meu peito, tomando forma a súbita Afrodite de uma surpresa, e de uma troca de olhares ao primeiro cumprimento, de repente se gerou a meu lado, segurando um copo rubro de Mavrodafni entre dedos, a pérola de uma deliciosa companhia humana. Sombra fugidia, pois então, e neste encontro fora d’horas, toda a saudade de duas águias extraviadas do omphalos. Mas a vida era perfeita nesta agridoce assimetria entre o desejado e o obtido, definindo-se tão menos pelo que se quer ter, do que por aquilo que estamos dispostos a renunciar.

Com Yalom, ciente de que “a chave para viver bem é, primeiro, desejar aquilo que é necessário e, depois, amar aquilo que é desejado”, transformando o “assim aconteceu” em “assim o desejei”, aceitei-lhe o noctâmbulo convite para trepar ao monte de Areopago, onde nos aninhámos a conversar, enquanto mãos invisíveis coroavam a Acrópole com um argênteo Δάφνινο στεφάνι feito de lua grande. E as horas passavam de mansinho sobre Atenas, de confidência em confidência, ao ouvido de Virgo e Norma e Hydra, até cair a última badalada da meia-noite e de novo voltarmos ao passadiço de Apostolou Pavlou, onde alguém viera debruçar-se à janela para dedilhar um bouzouki. Ali sentei, de pestanas húmidas, cruzado desta estranheza tão a propósito de tudo, na experiência extraordinária de me sentir girar nas contas da Vida.

De volta ao hotel, sorria ao tanto que ficara por dizer. “E precisamos tanto de conversar! Precisávamos de fazer uma viagem de comboio, daquelas que se faziam antigamente, muito longas, em que se gastavam treze horas num percurso de trezentos quiló­metros. Mas nem isso chegava… Precisávamos, sim, era de ir de comboio através de toda a Europa, de toda a Ásia, até Pequim ou Vladivostok. E pernoitar em todas as estalagens que já não existem. Ficarmos a conversar ao canto do fogo, durante a noite; e viajar continuamente durante o dia…” (David Mourão-Ferreira). Pois então, adeus. Duas águias, dizia o sonho, seguindo caminhos opostos. Mas não: ambos sabíamos que a realidade era outra. Meu amor por vir, não somos águias, não somos aves, não sabemos voar. O oráculo da esperança fala de outras convergências.

E chegado a Braga, sentindo já a falta do tanto céu que clareava Atenas, tornei para a janela aberta, onde à chuva, a fantasia punha ainda uma longínqua Acrópole hirta e lúcida a horizonte, lendo e relendo os versos de Rilke:

You who never arrived 
in my arms, Beloved, who were lost 
from the start, 
I don't even know what songs 
would please you. I have given up trying 
to recognize you in the surging wave of 
the next moment. All the immense 
images in me – the far-off, deeply-felt 
landscape, cities, towers, and bridges, and 
unsuspected turns in the path, 
and those powerful lands that were once 
pulsing with the life of the gods – 
all rise within me to mean 
you, who forever elude me.

You, Beloved, who are all 
the gardens I have ever gazed at, 
longing. An open window 
in a country house –, and you almost 
stepped out, pensive, to meet me.
Streets that I chanced upon,- 
you had just walked down them and vanished. 
And sometimes, in a shop, the mirrors 
were still dizzy with your presence and, 
startled, gave back my too-sudden image.
Who knows? Perhaps the same 
bird echoed through both of us 
yesterday, separate, in the evening...”.


Carlos Marinho

ATENAS & DELFOS (Capítulo 5: "Un Rendez-Vous Manqué")

#5. DELFOS | Diário de Bordo (dia 3, parte I): Um impreciso número de horas de sono mais tarde, quinze ligeiros minutos da casa de Eurípides até à estação de Liossion, ao selvático ataque das estradas gregas, selvaticamente puxado sobre a fita lisa do asfalto às mãos de um tenso taxista de bigode à escovinha. Ésquilo, reputado por chamar aos atenienses «construtores de caminhos que domesticaram a terra selvagem», teria certamente muito a discorrer sobre as dinâmicas da condução automobilística que conheci. No terminal, bocejando à medida que tornavam páginas de jornal, cruzando e descruzando pernas no assento gélido dos bancos da paragem, os passageiros aguardavam o pullman que nos levaria a Delfos. Melancolicamente, cabeceava sobre o meu diário, relendo os versos de Arnaldo Varela de Sousa:

Não irás / a Delfos / para saber /que futuro / se escondeu / no teu passado / nem que verso / e reverso / (ainda / obscuro) / traçará / o teu arado. / A Delfos / só irás / pelo mais puro / desejo / de tocar / o que é / sagrado”.

Delfos do «Gnothi seauton», do «Conhece-te a ti mesmo», da minha Psicologia toda. Este era o caminho da minha mais profunda necessidade, da exploração da própria geografia interior, para, como diz Italo Calvino, “traçar o gráfico dos movimentos do estado de espírito, extrair de [mim] as fórmulas e os teoremas”. Delfos, o famoso santuário grego, hoje declarado Património Mundial pela Unesco, di-lo-á qualquer brochura turística, foi reconhecido como o maior centro religioso da Antiguidade, situado na ladeira sul do Monte Parnaso. Reza a lenda, terá sido fundado devido a uma fissura na terra de onde saiam vapores naturais que levariam ao transe e à previsão do futuro. De acordo com a mitologia, querendo medir com exatidão o centro do mundo, Zeus enviou duas águias, uma para Oeste e outra para Este e o local onde se encontraram foi em Delfos, o omphalos, umbigo do mundo. A região, porém, era dominada pela monstruosa Píton, uma cobra gigantesca que espantava qualquer possibilidade de aproximação. Coube então a Apolo oferecer-se para enfrentar a serpente, representante das forças primitivas e irracionais, derrotando-a num formidável combate. O deus vitorioso sepultou os restos do ofídio monstruoso exatamente debaixo do solo em que se ergueu o templo de Delfos, no golfo de Corinto, local em que as mensagens de Zeus, por intermédio de Apolo, chegariam aos interessados…

Depois de um tortuoso percurso de curvas e contracurvas, ao assalto das pornogeográficas montanhas da Sterea Ellada, rumo ao centro do universo, eu comigo mesmo, águia em exercício de voo, rumo talvez à águia outra que à hora certa do amor mais romântico, comigo se viesse cruzar no omphalos, viera a Delphos em peregrinação para um rendez-vous manqué. Recordei o que escrevera no «Y», e do muito que de mim pusera na figura da Contesse do «Entr’Actos»: “A maioria das mulheres, distraídas pela lassidão e pela conversa, embrutecidas de sensibilidade pelo vinho da indiferença, vive para o patético e para o heróico de uma vida só – ela vivia para o de várias. Assim era: um plural concentrado de múltiplas mulheres, um jogo de caleidoscópio, onde esparsas imagens lhe davam, a cada movimento de alma, um nome distinto. Mas a tendência orgânica para a simulação dramática deixava-a terrivelmente só. O grande homem é como a águia, quanto mais se eleva menos visível se torna e é castigado pela sua grandeza com a solidão da alma". Eu trazia todas estas altanias de Narciso, e aqui – sem premeditá-lo – viera purificar-me dos excessos de sentimento.

À medida que subia rumo ao Fórum, cantarolando por entre os ciprestes, olhava para o vasto horizonte, sentindo uma paz cada vez maior: eu, águia, descia à terra. “Compreende-se que os gregos hajam dedicado Delfos a Apolo, deus da Poesia e das Artes, pois melhor varanda sobre o mundo belo não poderia a divindade encontrar. Os olhos vagueiam na planície sagrada, no azul da lonjura marítima, lá para as bandas de Lepanto; sobem as encostas do Parnaso e detêm-se, ali e acolá, nas alpestres saliências rochosas, umas nuas e graves de meditação, outras vestidas de exuberante e múrmuro arvoredo. E quanto mais se contempla o monte célebre, mais estranho ele se torna, com suas escarpas, seus desvãos, suas cristas altíssimas, terra de formas singulares, brava terra de ninfas e de pastores, orquestra de brisas e de arroios, epopeia de cor, de luz e de ritmo. Mais para cima encarrapita-se, quase tão branca como os burgos das ilhas helénicas, a aldeia de Arachova, a serrana; mais para baixo, fica Levádia, onde nasceria o rio Letes, em cujas margens as sombras do Inferno iam beber o olvido. Quem, vindo a Delfos, não amaria trazer consigo um pouco da água do rio do esquecimento e bebê-la aqui, para esquecer o passado e o presente, para esquecer o Mundo e ficar enlevado para sempre, ante esta paisagem de sonho?” (Ferreira de Castro).

Esperei junto ao omphalos, mas o amor romântico não veio. Como não poderia nunca. Tamanho, porém, era o orgulho que a intrepidez me dava a experimentar, que a pegajosa assombração desse amor ausente começou por desprender-se dos meus cabelos. De repente, a sós comigo mesmo, chegava uma felicidade exuberante: a felicidade de bastar-me, na minha inteireza em construção, na minha solidão de mónada eterna. Por fim, inspirei uma golfada de ar fresco e, naquele retiro sagrado, cruzado de sombra pela figura esguia de ciprestes e colunas incompletas, calquei aos pés a serpente do medo de ser só. Eu tinha a Vida. E via agora – via realmente – o ser como a Suprema Realização Artística da Criação Excelsa, o mais elevado estágio da Arte Maior – a Beleza Divina encarnada numa Forma Mística, cujo Segredo «graecum est, non legitur» (é grego, não se lê), ou (como se diz de certo livro alemão) «es lässt sich nicht lesen» (não se deixa ler), a partir do qual toda a Vida era concebida. Este era eu a despir-me, na frase de Ficino, das vestes humanas que me cobriam o divino. “Os deuses não morreram: o que morreu foi a nossa visão deles. Não se foram: deixámos de os ver. Ou fechámos os olhos, ou entre eles e nós uma névoa qualquer se entremeteu. Subsistem, vivem como viveram, com a mesma divindade e a mesma calma” (Fernando Pessoa).

Foi aí que compreendi. Viera a Delfos para descobrir que a Beleza lá estaria sempre: não foi a perda da inocência que ma extraviou, não foi a displicência do tédio que a desanimou, não foi a maldade agressiva que a destruiu, não é a idade que a usurpa. E caminho fora, sonhando como os pastores da Arcádia nos seus cantares bucólicos, na forja – imparavelmente – os meus defeitos e as minhas qualidades, as minhas insuficiências e as minhas artes mágicas, encontrei por entre as milenares pedras deste mítico espaço, a Beleza da minha totalidade a sós. A três horas e meia de distância, Atenas reclamava a minha presença. Esta era a Grécia, reveladora e curandeira, colírio para olhos cansados, de à procura – sofregamente. Os deuses estão em capacitarmo-nos de que merecemos a Beleza que existe. Foi de novo rumo a Atenas, tão descontraidamente entregue ao orgulho das minhas conquistas, que vim a mim celebrando uma nova paz. “A Delfos / só irás / pelo mais puro / desejo / de tocar / o que é / sagrado”. Enfim, tudo se alinhava. “Todos estes mármores têm milénios, mas não é a evocação do passado, a perspetiva longínqua, a vida que as brancas pedras viram transitar, que dão esta sensação de magia. Não é o que morreu, é o que vive; não é o que foi, é o que está: são estes tempos em ruínas, sem a angústia fúnebre das ruínas; são estes templos que dir-se-á terem sido erguidos já em ruínas, para serem mais belos, para serem eternos”. Todo o amor estava em mim. Suficiente. Por fim, vivia, desfrutava: este era o presente, este era o sagrado.

Ao dar-se a transformação, eu que sou todo de reautorias narrativas, pude então rever e ressignificar o passado, mudá-lo dentro de mim. E como aprendi a amar uma mulher, amei também Atenas no refreio da ansiedade, na capacitação da minha auto-suficiência. Chegado à cidade, serenado pela paulatina concretização das minhas ambições de sonhador à conquista, fui falando com as ruas e as vielas, de Sintagma a Plaka, de Plaka a Monastiraki, ao meu ouvido, Nachomides, n’«A Carta Sagrada»: “Fala com ela para a pores à vontade. Profere palavras que exaltem o amor, o desejo e a paixão, e palavras de reverência a Deus. Nunca a forces. A disposição dela deve ser como a tua. Conquista-a com graciosidade e sedução. Sê paciente até despertares a paixão. Começa com amor. E quando a disposição dela estiver pronta, deixa que o desejo dela seja satisfeito primeiro. O importante é o prazer dela”.

Teu hóspede chegara, Atenas, senhora minha, não mais tropeçando na ansiedade de agradar por medo à solidão. «Ter-me-ás como me fizeste, Vida» pensava para comigo mesmo «Espirituoso do flirt, jogador de avanços e recuos, à espera de ver como gira a tua roleta, do que tens para me dar». E sob a lua grande de segunda cheia, voltei à praça de Monastiraki, onde outros tantos insights me esperariam, desta feita, à mesa de um prato de polvo grilhado e de um copo de Assyrtiko, esse que dizem ser dos mais inusuais vinhos brancos do Mediterrâneo, redolente a figos e madressilva…



























Carlos Marinho


ATENAS & DELFOS (Capítulo 4: "Uma Papoila Vermelha para Sócrates")

#4. ATENAS | Diário de Bordo (dia 2, parte III): À medida que ia riscando da checklist, orgulhosamente conquistados, os objetivos do meu ambicioso esforço cartográfico, fui-me permitindo renovar acalmias; o cansaço, porém, era fixo na sua extensão e pedia-me oásis de tranquilidade para mais de perto fruir da Beleza em torno. Descendo aos arrastões do neolítico promontório da Acrópole, enchi pulmões de revigorado oxigénio quando cruzei a Dionysiou Areopagitou para entrar no Museu da Acrópole. E tudo era pedra de pâte à choux, talhado de sonho, moído de luz, fazendo-me recordar as palavras do Professor Pearlman: “Muscles are firm, not a straight body in these statues. They're all curved, sometimes impossibly curved, and so nonchalant hence their ageless ambiguity as if they're daring you to desire them”. Já antes dissera que o verdadeiro artista é aquele para quem, na frase de Gautier, «le monde visible existe», ao lhe ser revelada, através da sua natureza, a essência das coisas, pro forma, o que só acontece, em função do Belo, sendo que a Beleza é a forma final de um objecto enquanto percebida sem representação de fim. Era a isto que o esteta Wilde se referia quando escreveu que era «preciso ser-se muito superficial para rejeitar julgar pelas aparências».

O chamado juízo ou gosto estético, parece ser, na verdade, uma grandeza de acuidade da sensibilidade – quanto mais sensível for uma alma, tanto maior a sua tendência a fremir de comoção pelas mais pequenas coisas: ora, o objectivo da Arte é precisamente a emoção pela emoção e porque é de índole pessoal, torna-se, acto contínuo, impossível dar uma definição objectiva de Beleza. Assim como a chamada «grandeza de um artista», que medem pelo grau de “quantidade de Beleza” que ele consegue fazer inspirar ao público através da sua criação, também a chamada «qualidade artística» de uma obra, não mais sendo do que o grau de “quantidade de Beleza” que as pessoas nela são capazes de descobrir é mito pois que é relativa: não é a obra que é bela, não o artista tem poder para a fazer bela – a Beleza somos nós. Apreciar, reconhecendo, descobrindo Beleza, é tê-la dentro de nós, porque Beleza é um conceito nosso, só dentro de nós é que é concebida. Encontrar é descobrir o que se já possui, sobre o qual, se têm já conhecimento. Porque o juízo estético de um indivíduo se encontra indubitavelmente sujeito às influências socioculturais da sua geração, torna-se impensável a ideia da criação de uma obra de arte, sem que esta seja determinada pelos padrões de beleza e critérios de julgamento do público, em voga nessa mesma geração, tendendo, todo aquele quem considera que a razão pela qual certas obras (concebidas no passado) que se lhe afigurem incapacitadas de lhe despertar um arrebatamento de deslumbre, de o impressionar minimamente, possam ter recebido uma sincera ovação na época em que foram criadas, se deve a um melhoramento que a Arte, tem vindo a experimentar ao longo dos tempos, erra: pois a Arte não melhora – evolui. Quando Stendhal afirma que a Beleza é «uma promessa de felicidade», não podia estar mais certo, porque Beleza é prazer: estimula a nossa sensação de grandeza interior – um ‘paroxismo espiritual’.

Disto ciente, diante da estatuária grega em parada museológica, como de um espelho, procurava reafirmar a pose, reeducado pela guia das suas voluptuosas silhuetas, erguendo altaneiro o sobrolho, todo arrogâncias de Narciso, avaliando-me, aprazado, em imaginação os lábios em febre, franzidos, num afã de lunático, à procura dos lábios que me tardavam, no encontro amoroso de erastas e eromenos, meus internos opostos. Pois a boca sabe do que gosta, e o que lhe agrada ela pede: 'faz isso outra vez'. Por dentro, a discreta gargalhada proibida da vaidade suspirando-me ao ouvido: tu és o favorito dele. Esta era a boca que lhe daria, mármore liso virginal: no seu beijo meu epitáfio suficiente. Ardia em mim, terrífica, a ausência desse beijo, amor por vir, como o silêncio dos poetas e do sepulcro, tão flamejante no desejo que instiga que esperava já por si, pronto na antecâmara de me chamar. A fantasiar, tudo antecipava. Antes das suas mãos avançarem sobre o meu corpo, já o antegosto delas me ia despindo. E desde dentro, em segredo, insuspeito turista displicentemente vagueando pela galeria de mais um museu, amava esta e aquela obra de arte, tocando este seio e aquele pénis, transgressivamente, trazendo-os do entalhe de frontões e do alto dos seus escaparates, numa invisível orgia de sentidos em alvoroço.

Subindo pela Makrigianni Vyrinos, girei depois para o Arco de Adriano, o Templo de Zeus Olímpico, e os jardins de Zappeio, onde pausei para um almoço de cordeiro, rosé e Baklava. Subi depois para o Monte de Filopappos, para deitar uma papoila vermelha à prisão de Sócrates. Quem te prendeu Mestre, não entendia de Beleza. Deitei nas flores, reflexivo, pensando se os adoradores do belo haveriam para sempre de ter, no mal, na insensibilidade, e na incompreensão, tão bárbaros carcereiros; este era o mundo tal como evoluía, nas parangonas de jornais anunciado, o gritante genocídio na Síria, a loucura dos diários massacres, a morte lenta da alteridade, o egoísmo e o medo dos humanos levando-nos em conjunto para espirais de luto e de agonia. De olhos postos no céu azul pensava em Marsilio Ficino exclamando: «Conhece-te a ti mesma, ó estirpe divina em vestes humanas». E ali, naquele sossegado recanto à sombra do famoso cárcere, querendo a tudo pôr em oração, tão longe de violência, e tão próximo dela pelo medo da solidão, o cansaço alargou-se em mim com os efeitos da conium maculatum, e recordei o que Platão descrevera no Fédon: «Ele, porém, continuava a andar quando declarou que sentia as pernas tornarem-se pesadas. Então, deitou-se de costas, como efetivamente lhe recomendara o homem. Ao mesmo tempo, este aplicava a mão aos pés e às pernas, examinando-o por intervalos. Em seguida, apertou-lhe fortemente o pé, perguntando-lhe se sentia; Sócrates respondeu que não. Depois, recomeçou na parte inferior das pernas e foi subindo para mostrar-nos que já começava a esfriar e a tornar-se hirto. E, tocando-o ainda, declarou-nos, que quando chegar ao coração, nesse momento Sócrates partirá». Voltei a mim num rebate de consciência. Recusava estatuificar nesta cega imposição cerebralizada de em tudo ver significado, sem de nada realmente fruir. Levantei, fui ajoelhar ao altar de Zeus Agoraios, e perder-me pelo Monte das Ninfas.

De mim para mim, recitava em louvor a Apolo, que para sempre reinassem em mim a Beleza e a Sabedoria: «Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está – (o teu templo) – eis o teu corpo. Dá-me a alma para te servir e a alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome. Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai. Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar. Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te a adorar-te. Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim» (Fernando Pessoa).

E as horas foram passando até regressar ao hotel. Um banho de imersão e alguns parágrafos de diário mais tarde, desafiei-me rumo a Gazi, ao encontro de um jantar de Souvlaki e vinho tinto. Na alma, maior era a tranquilidade, no andar a confiança. De repente, Atenas fez-se muito próxima e à noite, já no aconchego dos lençóis, o sono sobreveio por completo à consciência e resvalei para a nebulosidade dos sonhos…














Carlos Marinho

ATENAS & DELFOS (Capítulo 3: "Onde a Morte Não Existe")

#3. ATENAS | Diário de Bordo (dia 2, parte II): “Nos templos gregos, a Morte não existe; a redenção da Matéria é feita apenas pela Beleza. Pode-se visitar dezenas, centenas de vezes a Grécia: a surpresa deixará de existir, a exaltação inicial diminuirá, mas o contacto visual com os seus monumentos será sempre uma sagração da Vida. Não importa, portanto, que eles não sejam vastos como os templos de Karnak ou altos como as pirâmides célebres. O Parthenon não é, efectivamente, grande”. Mas ali estava, majestático na sua lúcida simplicidade, por entre o fluxo de visitantes arrítmicos, tal como eu, curvos ao beija-mão da sua mítica arquitetura. Seria ele “mais belo quando estava intacto ou é mais belo agora, na nobreza romântica dos seus mármores partidos, na austera dignidade da sua mutilação?” (Ferreira de Castro). Para onde olhasse, tudo era penedia erodida; e contudo, tão completa em si mesma: cada destroço de fragmentação parecia preencher a cuba perfeita de uma posição obrigatória.

Em frente do Museu, entre o Parthenon, o Erechtheion e os Propileus, há centenas de mármores partidos, que se estendem sobre o grande rochedo. Eles emprestam à Acrópole, a certas horas do dia, o aspecto de depósito de material de construção. Amputados membros de templos desaparecidos, e até, de outros ainda existentes, não foi possível descobrir o lugar que ocupavam, outrora, no corpo arquitectónico. Faziam parte de sete ou oito famílias, cujos componentes se misturaram ao longo dos séculos e, num espaço apenas de trezentos metros, nunca mais os cônjuges, nunca mais irmão e irmão conseguiram juntar-se. Parece estarem à espera de que, após tantas pesquisas inúteis, o Acaso os reúna, revelando o seu parentesco; ou que olhos de arqueólogo distraído ou de menino inocente topem, de súbito, a face que se uniu, na antiguidade, à face de outra pedra”.

Também eu me procurava inteiro, olhando para a ausência amorosa como uma fenda no mármore dos meus templos sagrados. Talvez assim tivesse de ser. “Seleccionando os mármores dispersos na Acrópole e descobrindo, com longa paciência, o primitivo acasalamento das pedras, tornou-se possível reconstruir, quase completamente, e o soberbo templo. As colunas, formadas por blocos arredondados e sobrepostos, espécie de tambores que vão diminuindo de tamanho desde a base ao capitel, estão, na sua maioria, de pé, embora não haja nelas um só metro sem cicatriz”. Talvez assim fosse, na minha percebida ruína, de facto completo na íntegra. Talvez nenhuma Morte me assistisse senão a que quisesse evocar neste susto de sentir-me tão só comigo mesmo. Olhei em volta, compreendendo o espaço do Templo de Nike ao Teatro de Dionísio. Algo em mim, do que em mim me viera reconstruindo, juntando as peças da Acrópole interior, pedra sobre pedra, num esforço gradual e tentativo, repelia agora a Morte da rocha fria e insensível. Algo em mim, chamava agora a luz que espanta a sombra.

A ardência de cartografar Atenas pesava ainda mais do que a capacidade de fruir do seu aconchego e contudo, algo por dentro quebrava, algo por dentro serenava. Uma estranha forma de paz acariciava-me cada cicatriz: um cuidado matrístico, protetor, securizante. Respondi-lhe com um sorriso, e avancei do Erechtheion para a saída. Imenso era o céu e azul tão profundo. A meus pés, subitamente inversa de posições, Atenas chamava-me murmuramente pelo nome...



























Carlos Marinho