terça-feira, 31 de julho de 2018

ATENAS & DELFOS (Capítulo 2: "À Sombra das Oliveiras Tristes")

#2. ATENAS | Diário de Bordo (dia 2, parte I): Nova era a manhã, e promissora por sob o seu generoso esplendor solar. Entestando o promontório da Acrópole, no sétimo andar da casa de Eurípides, foi sentado à mesa de um frugal pequeno-almoço de domingo, fiel backpack aos ombros e objectiva da câmara em riste, todo Píteas de ambição e de vontade, que me aventurei para Monastiraki, agora na palidez valetudinária da ressaca de véspera, rumo à Biblioteca de Adriano, ao Fórum Romano e à Torre dos Ventos, assim reafirmando a minha disposição exploratória sobre Atenas-rainha. Objetivo último: a Acrópole. “Compreende-se que Atenas fosse, em tempos idos, cidade de filósofos e poetas. Muralhava-a, nessa época, como hoje, terra alta de serranias; em cima, o tecto do céu; em frente, o mar, como o seu mistério. Para onde quer que se voltasse, o homem sentia, próximo dele, o limite físico. Dava-se, então, a evasão espiritual, pois esta imensa redoma incitava às grandes interrogações cósmicas” (Ferreira de Castro). As interrogativas, porém, estavam lá muito antes de cruzar a sombra dos pilares da Biblioteca de Adriano, por entre os quais, mímico da pena de Aciman, tentara eu recrear o cinéfilo passo de Elio à espreita, seguindo o amor primeiro para lhe agarrar a mão salvífica e sussurrar ao ouvido: «Queimemos esta biblioteca invisível com o fogo da nossa devoção».

Teimosamente cismático, na busca de esteticizar um nexo que melhor significasse a minha vinda à cidade, fechavam-se-me agora os olhos para entretecer sonhos de romance. Em total honestidade, nenhuma retrospectiva que fizesse me desanimava; escrevera-o no «Y» muito antes de realmente perceber a sua seriedade: “Conheci de poetas e idólatras a inefável doçura das afeições platónicas, de cavalheiros tive beijadas as palmas da mão e jurada uma respeitosa castidade de amor à antiga, vivi dos gommeux o flirt sussurrado em salões e jardins noturnos, de românticos provei o tumulto soluçado das paixões desarrazoadas, essa tontura de vertigem, esse solutio químico de almas, de participação mística, de unus mundus, de contacto com o numinoso (…) Homens sem vintém, de arte e sentimento, homens de boa fortuna, de alta plana, notáveis da melhor sociedade, duques e reis, pretendentes a quem me devotei numa experiência de servidão, no entranhar xipófago que funde até à falta de fôlego, pretendentes frustrados que se alistavam na Legião Estrangeira para se esquecerem das minhas recusas, outros que diariamente me ajoujavam os camarins e as salas de casa com rosas Paul Neyron, que me chegavam ao pescoço as jóias de Vever e Lalique, que me estreitavam ao corpo os veludos dos Medicis, os cetins dos Bórgias, os arminhos dos Bourbons”. Mas longe ia o tempo do contentamento amoroso, e as rosas Paul Neyron há muito que haviam secado.

Agora por entre ruínas, parecia mover-me pelos silenciosos claustros do meu coração a sós, carregando na sombra o fardo da minha individualidade monádica. Ainda assim, persistente Sísifo, prosseguia esforços: de pilar em pilar, de pedra em pedra, subindo rumo à Acrópole. “Os seus monumentos dão, sobretudo, um sentimento de ordem estética, de amor à luz e de combate às sombras. É uma beleza clara, que se irmana com o céu e a terra, desperta a harmonia espiritual e incita a viver” (Ferreira de Castro). Deveria, capacitei-me enfim, de insuflar um oxigénio de calma pulmões adentro, cerebralizar menos o significado desta experiência, desacelerar-me do afã de amar tão cartograficamente a Beleza, travar o hiperglobínico furor da paixão estética, e simplesmente viver para o momento, pelo momento, no esplendor do seu vazio e da sua aurea mediocritas.

Falamos muito, e com hipocrisia, no sentimento que temos da beleza antiga, e das civilizações mãos da nossa, e que foram pagãs. Mas nós não temos a alma grega nem a alma romana. Amamo-los de perfil, incorporeamente. Nada da alma antiga está em nós ou connosco. A nossa ânsia de beleza clássica é toda cristã na sua fúria de perfeição, no seu desassossego. O sentimento que conduzimos, para amá-los, até ao soclo das estátuas helénicas, é um insulto a eles. Amamos a beleza demasiadamente: os gregos não a amaram assim. Pois o seu sentimento possuía a calma da lucidez com que viam. Ver muito lucidamente prejudica o sentir demasiado. E os gregos viam muito lucidamente. Por isso pouco sentiam. De aí a sua perfeita execução da obra de arte. Para executar a obra de arte com perfeita perfeição é preciso não sentir excessivamente a beleza que se vai esculpir. A arte grega era toda de equilíbrio (…) Nós levamos para a sensação de uma estátua o sentimento, translato, que o cristianismo nos ensinou a levar para a admiração de Cristo na cruz, da perfeição moral, do ascético e do casto. Não é deslocando a direção do nosso olhar iludido que conseguimos torna-lo lúcido e calmo. É criando em nós um novo modo de olhar e de sentir” (Fernando Pessoa).

Sim, era disto que precisava: de um novo modo de olhar e de sentir. Ajudou que quanto mais subisse, mais a consciência do meu peso corporal se substituísse à reflexão compulsiva. Adentrava agora o Fórum Romano, e a Torre dos Ventos. Aos lábios, chegou-me uma música dos Madredeus, e à sombra das oliveiras tristes pus-me a cantarolar:

https://www.youtube.com/watch?v=gGllz9s3aQE

Estátua / parada e silenciosa / olhas para mim receosa / que perceba o teu enredo / que te descubra o segredo / é que eu sei /eu sei / qual é o teu maior medo / é que eu pare também / e passe a ser um rochedo /e deixe de ser alguém…”.













Carlos Marinho

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