sábado, 22 de setembro de 2018

ISTAMBUL & CAPADÓCIA (Último Capítulo: "O Rapaz de Malatya - 2ª. Parte")

3: O Rapaz de Malatya (2ª. Parte)

I – Lépido e estrepitoso, à la cowboy dos vales capadócios, aterrou de um pincho para dentro do shuttle, aquele que viria a conhecer como o rapaz de Malatya. Estacado no assento, fixei-o pelas intermitências de um pestanejar atónito, sem que se me tornasse imediatamente compreensível o motivo do tanto rumor que espumava em torno. Também ele na casa dos trinta, atlético e trigueiro, vinha de camisa azul-bebé abrindo ao peito espadaúdo o desmaiado fole de uma janela em ‘S’ estreito; e nas mãos calejadas segurava uma checklist que percorria de alto a baixo pelo negrume dos Ray Ban, firmemente aparelhados à afilada sela do nariz. Havia nele a astúcia-zweifel da águia – um olho no peixe, o outro no gato – mas também a melancólica ciência de saber que quanto mais se eleva menos visível se torna e é castigado com a solidão da alma (Stendhal). Já antes aqui estivera, detido nas barreiras deste fremente reconhecê-lo. Lembrei-me das confissões que a Contesse fizera no meu «Entreatos»: “aquele andante suave e lamentoso tomou-me de assalto. O poder de penetração era tal que me subjugava, enquanto a música parecia falar-me, sussurrando aos ouvidos: Pauvre enfant, dans un jour d'effroi/L'amour a-t-il semé ta vie?”. Ao cabo de um impreciso número de verificações, apontou para mim e para outro passageiro o dardo do indicador resoluto, pedindo em inglês nervoso que o seguíssemos para o interior de outro shuttle. Terá sido a sua brusquidão de modos, quase em revolta pela própria trapalhonice, que me fez chegar impressões de uma vulnerabilidade insegura; como a querer ocultar-se atrás de máscaras. Nesse momento, senti que me apiedava das manhas istambuliotas, e um sorriso triste animou-me os lábios. Quando trepei a bordo, o novo grupo recebeu-me no elástico de uma malha de sorrisos: Karen, a sexagenária da Califórnia, que de antemão comprara cinco anos de carreira laboral para que pudesse agora gozar de uma muito agradável reforma itinerante, Tian Chaochen, o criativo hipster com quem haveria de disputar, em comédia, o formato de uma das rochas do Pashabagi (ele dela dizendo ser um camelo, e eu um caracol); havia ainda um amoroso casal chinês de filho ao colo, um muito cúmplice casal italiano rondando os seus 40’s, irmão e irmã, e respectivos consortes, todos de origem árabe, um casal da Cidade do Cabo e, por último, uma senhora de gracioso envelhecer, também ela provinda da África do Sul. Assim que nos acomodámos, Hilal apresentou-se como guia da nossa tour pelo Norte da Capadócia, e adiantou-se ao motorista num simpático reconhecimento da sua presença ao volante. Seguiram-se as explicações acerca da geografia capadócia, atribuída – dizia Hilal num afã professoral – à ação combinada da atividade vulcânica de há 10 milhões de anos, e da erosão provocada pela água e pelo vento, esta última acentuada por areias resultantes da desagregação das rochas menos compactas. Daí, teimava ele, as estranhas formas rochosas a que haviam dado o nome de chaminés-de-fada – grandes colunas naturais em forma cónica que sustinham no seu topo um bloco de rocha maior, onde permaneceria até a erosão não mais lhe permitir sustentáculo. Olhando em volta, à medida que o shuttle avançava pela estrada, lembrei-me dos versos de Flecker: “Não passes por baixo, ó Caravana, ou não passes cantando / Ouviste aquele silêncio em que os pássaros estavam mortos / e, contudo, qualquer coisa piava como um pássaro?”; desceu-me em arrepio pelo corpo um susto de frio ao imaginar a lenta espera de cada um destes pacientes Atlas estáticos, erguidos no cavo silêncio dos descampados – a lenta, penosa e consumptiva espera até à queda derradeira. A primeira paragem ocorreu a poucos quilómetros, quando o autocarro estacionou numa berma do vale de Göreme, deitando para algumas rudimentares construções escavadas na rocha macia. Uma tenda de souvenirs, uma roulotte de merendas, e dois camelos ornamentados para que sobre eles se fizesse pose, ofereciam ao viajante o que bastasse para um bom flash fotográfico de puro deleite turístico. Esta, continuava o nosso guia, fora terra dominada pelos Hittitas e mais tarde conquistada por Alexandre o Grande; hoje, o que a tornava mais popular eram os vestígios deixados pelos primeiros cristãos que a haviam habitado, e as suas igrejas decoradas com frescos. Tourists not always respect these sites” condenava ele “Sometimes we find their names scribbled on rocks. All sorts of foreing names, like Carlos”, e tornou para mim uma risada trocista, despontando a animação entre todos os presentes. “I’m from Portugal” apressei-me a corrigir com fingida consternação despeitada. Não seria a primeira vez que Hilal tomaria liberdades para troçar de mim; no Vale de Baglidere (ou Love Valley, como chamado pelos turistas), lançou-se a bater-me no ombro, como o faria um irmão mais velho, dizendo, entre gargalhadas, “I’ll punch you all afternoon”. Prosseguiram as explicações: esta era também terra de eremitas, que na altura formavam um grupo social importante, embora nada tivessem que ver com a vida monástica – em extrema reclusão solitária, recebiam tudo quanto lhes constituísse necessidade, por parte da população. Foi no seu encalço que tornámos à estrada, até ao Open Air Museum, a cerca de 1,5km da localidade de Göreme, no cruzamento para Ortahisar. Aqui, contava Hilal, nascera São Jorge, um dos santos mais venerados do catolicismo, imortalizado na lenda em que triunfava sobre o dragão do Mal; contrário porém, à sabedoria popular, informou-nos sorrindo que não fora efectivamente São Jorge a derrotar a fogosa criatura, mas sim um soldado menor, também parte do exército do imperador Diocleciano, embora muito menos glamoroso do que o primeiro. No Open Air, as estruturas eram combinadas sob um museu, e no número dos seus principais edifícios e estruturas, visitámos o Mosteiro Rahibeler, a Capela de São Basileos, a Igreja Elmali, a Capela de Santa Bárbara, a Igreja Yilani, uma Copa-Cozinha e Sala de jantar, a Igreja Karanlik, a Capela de Santa Catarina e a Igreja Çarikli. Depois de batermos a pé toda a vastidão do recinto, viemos recolher-nos à sombra do shuttle. Karen, a quem logo identifiquei esse mongoose instinct de que Kipling falava, entretinha-se a conversar com Hilal. O jovem ia, aos poucos, revelando mais de si, contando como em menino lhe desagradavam as obrigatórias atividades de electrónica na escola; gostava era de ler, e sempre lera muito, apreciava os grandes pensadores alemães, como Schopenhauer e Espinosa; o seu modesto sonho era continuar a aperfeiçoar línguas para garantir maior estabilidade financeira (“Chinese will bring me great fortunethe future is Chinese”). A simplicidade do relato foi absolutamente comovente, e pôs-me no coração a saudosa memória de Yusuf e da sua história: “Era uma vez um menino nascido em Mersin, que a contragosto vendia fruta na mercearia do tio…”. Quando voltámos ao shuttle, girámos para Avanos, em direcção ao restaurante, depois do que seguimos para uma visita guiada aos interiores de uma olaria, cujos produtos, feitos em instalações caseiros, ficavam a cargo de elementos de família. Aqui, no suave encosto de uma saleta de visitas, a beberricar elma çayi, foi-nos dado a assistir um exercício de moldagem em barro pelas mãos do elemento mais novo da família de oleiros. Mais tarde, levar-nos-iam a percorrer os vários andares da loja o que, para a esposa de um dos árabes, resultou em múltiplos e felizes acréscimos à decoração doméstica. Voltámos à van, desta vez rumo a uma casa de tapetes. Durante o trajecto, Hilal explicou-nos que “a long time ago”, as raparigas eram escolhidas pelas mães dos pretendentes em função dos tapetes que bordassem, por forma a perceber até que ponto a paciência lhes faria elogio. Because the most important thing in a marriage” rematou ele, sorridente “It’s patience”. A incursão pela loja de tapetes em Beysehir foi extensa e cansativa; atiraram-nos aos pés todo o tipo de produções: os hali, os kilims, os cicims e os sumaks, e entre um e outro gole de um renovado chá de maçã, lá fui tornando para Tian Chaochen um solidário revirar de olhos entediados...

II – Perto das 17h, exaustos da viagem, regressávamos ao shuttle; Hilal aproveitou para elogiar a competência do motorista, dizendo “I love this man”. Do assento fronteiro, cofiando a patriarcal barbicha cinzenta, o árabe inclinou-se para diante, exclamando sorridente num inglês torto: “I can’t say love this man, because man love only the woman”. Hilal assentiu num acesso de mesuras apologéticas, e sondou de olhos postos em mim que alternativa poderia utilizar. Acudiu-me Alfred Douglas, e o seu a love that dare not speak its name, e de um inventário de capital linguístico apropriado ao decoro islâmico, propus o verbo «to admire». Meneando a cabeça em sinal de apoio, Hilal apressou-se a corrigir a penalização, e piscou-me o olho em gesto de agradecimento. Sorri interiormente. Na delícia e na tristeza dessa íntima partilha. Humano que se veja proibido de ser em liberdade, a quem se lhe dissuada – passiva ou agressivamente – a necessidade de ampliação pessoal, é humano que de certo acabará deprimido nos engasgos de uma implosão. Uma educação que substitui os potenciais dos alunos pelo conformismo à coletividade, que incentiva a que o valor que nos atribuamos radique num parâmetro imposto desde o exterior, regulado por terceiros, não poderia ter outro efeito. Entendê-lo, no meu ponto de vista, reclama o uso de uma abordagem crítica por parte da epistemologia moderna, e um ativismo omnipresente em militância a favor da liberdade – sobretudo a liberdade rúbida e ruidosa, canhão à solta, numa chinfrineira de Carnaval rua afora, a desoras da decência, a bater tachos e tacões, arrastando garridas traînes de purpurina e de missangas, a que se edifique na celebração do que é honesto e coerente, a delatora de tóxicas invisibilidades, a que se sagre roteiro de humanização, que nos acorde a todos/as deste coma lúcido de passividade. Ia neste ponto das minhas elocubrações, quando Hilal se voltou para continuar o seu self-disclosure. Que vinha da Malatya, uma cidade do sudeste turco, parte da Região da Anatólia Oriental, regada por afluentes do rio Eufrates. As suas terras, prosseguiu, eram famosas pelos seus damascos (também chamados de apricó, abricó, abricô, abricoque, abricote, alberge, albricoque, alpece, alperce e alperche), comestíveis ao natural e internacionalmente consumidos como fruta seca e em doces. O meu sorriso alargava ao vê-lo gesticular o corpo recurvo sobre nós, em pose de quem instrui, na ânsia de mostrar os tantos conhecimentos a quem o validasse, ao decote flutuante da camisa cobrindo e destapando o peito, à graciosidade felina dos olhos penetrantes. Havia algo de impronunciavelmente genial na contracurva da sua maçã-de-Adão. Pela oblíqua, o sol entrava-me a rodos por entre os arvoredos da imaginação; ali, podia vê-lo trepar escadas à apanha da fruta mais madura, envolvendo os dedos polpudos em torno das bochechas firmes e arredondadas de cada damasco; e enquanto discorria, todo bazófias de sabedor, sobre as características, informações nutricionais e benefícios à saúde dos seus “beautiful apricots”, os meus olhos passavam em revista as letras de Aciman: “The Latin word was praecoquum, from pre-coquere, pre-cook, to ripen early, as in ‘precocious,' meaning premature. "The Byzantines borrowed praecox, and it became prekokkia or berikokki, which is finally how the Arabs must have inherited it as al-birquq", e demorando nele um sorriso lânguido de entretido com a charada, “All I kept thinking of was apricock precock, precock apricock”. Pelas janelas, dilatava-se-me aos olhos o Vale da Imaginação inteiro, também chamado Devrent ou Vale Cor de Rosa, com as suas fálicas estruturas de pedra, evocativas das ilustrações de Ian Beck em «The Joy of Gay Sex», a que se seguiu uma rápida paragem por Baglidere Vale e, por último, o vale dos Monges, na Estrada para Zelve. O nome vem de alguns cones escavados em tufos calcários que ali se destacam; alguns deles separam-se noutros mais pequenos nas secções superiores, onde, outrora, os estilitas e os eremitas viviam. Este vale, qualquer guia o dirá, contém algumas das mais fascinantes chaminés-de-fadas da Capadócia, com cumes de rocha duplos e triplos. De volta à estrada, ficaram para trás as fantasias de Devrent, e rumava agora de regresso ao Kaya. A despedida foi-me deliciosamente tristonha. À saída do shuttle, depois de aliciar cada tripulante com uma visita a Portugal, despedi-me de Hilal com um abraço, e segui para o hotel. O mais que se passou seguiu em rapidez de bala; um novo autocarro entregou-me a Kayseri, de onde segui para Gökçen e daqui, para Istambul. Depois dos abraços de Sedef e Mesut, ao cair no sofá, adormeci de sorriso aberto, sem sonho mais vívido do que o dos últimos dias…

Quando cheguei a Portugal, ao contrário do que sucedera pós-Grécia, nenhuma nostalgia maior me abateu o espírito. Ao invés, trazia na boca um pouco de Sezen Aksu: “Seninle baharı kutlamaya geliyorum / Başımı omzuna yaslamaya / Hayata yeniden başlamaya / Bağında, bahçende, pınarlarında / İçimi yıkamaya geliyorum…”.  Eu viera para celebrar a primavera com a vida, e queria continuar a reflorescer. Pela invocação à transcendência, pela promessa de emancipação, pela ruga do cógito perplexo, pela pirraça da criança sonhadora, pela cegueira do homem ambicioso. Vivo do arrepio da surpresa, do súbito picar da agulha, desse ‘não haver o que o fizesse previsto’. Vivo de me querer trapézios para alturas maiores, além-mapas. Vivo de avançar como for, no simples e no superlativo, na olímpica braveza que as condicionantes do medo e do desânimo despertem em mim, até perceber a invisibilidade dos vitrais celestes, essa que por indeclarada lei ou fixo dispositivo me imponha à altura a limitação de uma alfândega. Lúcido e protestante: é assim que sou, é assim eu me quero. Para então erguer o queixo, esporear o cavalo, e irromper futuro adentro, rumo ao que Sancho perceba moinho e Quixote perceba gigante. Não mais um São Jorge de falsas glórias, não mais um eremita recolhido às chaminés-de-fadas, mas um herói de mim mesmo, decidido a deixar para trás os brinquedos da imaturidade, soltar os balões da idealização céu afora, como o fizera a desvairada Baylem pelas ruas de Kadıköy, no seu estupor de alcoólica felicidade, ageless e terrestre, de pés no chão, pois que a vida começa aos 33, e vejo agora todos os meus sonhos em fogo, de crista inchada, cobrindo como aos balões da Capadócia, o horizonte inteiro do meu futuro mais bonito...















 Carlos Marinho

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

ISTAMBUL & CAPADÓCIA (3º. Capítulo: "O Rapaz de Malatya - 1ª. Parte")

3: O Rapaz de Malatya (1ª. Parte)

I – Pelas 10 da manhã do dia 11 de setembro, seguindo as recomendações da «Alethea Travel Tours», sentava eu no ferry para Karaköy, mordiscando, seca, a argola de um simit, com intuitos de chegar à agência «Turista Travel» e auscultar a possibilidade de uma ida à Capadócia. Quando atraquei em Eminönü, segui de elétrico para Sultanhamet e em breve me vi no número 16 da Divanyolu Caddesi, entestando uma funcionária de enormes olhos pestanudos, a quem expliquei as minhas intenções. Lamentavelmente, informou apologética, nenhum autocarro para a Anatólia Central demoraria menos do que 11 contínuas horas de viagem; também o comboio até Ankara e respectivo transfer para terras capadócias me tomariam mais do que o tolerável. A dois dias do regresso a Portugal, não restava alternativa senão partir nessa tarde. Marquei então passagem de avião para Göreme, e de um dos mais apetitosos flyers em display numa das montras da agência, incluí no programa de festas um tour de balão-de-ar-quente e uma excursão pelo norte da Capadócia, à responsabilidade da empresa «Flintstones». Não havia, porém, tempo a perder. Receando atrasos, lancei-me a trote para Istambul oriental, organizei o backpack para as exigências do novo destino, e às 14 horas on the dot, conforme apalavrara, desci Divanyolu Caddesi rumo à «Turista Travel», de onde partiria, em shuttle, para o aeroporto de Atatürk. Contudo, devido ao embargo provocado pelas cheias, o que poderia registar-se na memória como um rápido trajecto sem polémica converteu-se num moroso teste ambulante à paciência de cada passageiro. Quanto mais fundo queríamos o pé no acelerador, mais o trânsito parecia empancar. Aos soluços, no irritante pára-arranca da perturbada circulação, chegámos ao aeroporto justo a tempo de embarcar no TK2008 para a Kapadokya. A 11 000 metros de altitude, vendo nas nuvens a crosta espumosa de um ayran gigante derretendo pelo rubro-alaranjado do lusco-fusco, abri brochuras informativas para ler: “A Capadócia é conhecida em todo o mundo como um dos melhores sítios para voar com balões de ar quente. As espectaculares paisagens surrealistas, combinadas com condições de voo excelentes, permitem aos balões deslizar suavemente sobre e entre as chaminés das fadas, casas de pombos talhadas nas formações rochosas únicas, pomares e vinhedos – através de vales impressionantes, cada um com formações rochosas específicas, cores e formas – e depois flutuar sobre as ravinas onduladas com vistas de cortar o fôlego sobre a região”. Eram então 19.30, e pouco faltava para chegarmos a Nevşehir. Quando por fim aterrámos, um novo shuttle aguardava por mim com destino ao Göreme Kaya Otel. Entrei, cumprimentando os que ali faziam presença, e pouco depois, o motorista engatou a primeira velocidade para que o pequeno autocarro deslizasse de encontro à estrada. Avançámos por Göreme em linha reta, pelo que me pareceu uma planície sem fundos. Tremelicando ao fundo do shuttle, via lá fora, ao longe, a casinhotagem das aldeias acender uma e outra luz-de-presença na noite escura. Göreme é uma vila pertencente ao distrito e província de Nevşehir e à região administrativa da Anatólia Central da Turquia. Ocupando alguns vales pitorescos, apresenta testemunhos da intensa atividade monástica que ali se viveu entre os séculos V e XII — existem cerca de cinquenta santuários que celebram a vida de Cristo e outras cenas sagradas em frescos preciosíssimos. Cheguei ao Kaya – o primeiro hotel boutique, em toda a região, a ser entalhado nas rochas – perto das 21.30, onde prontamente me deixaram o reminder de que a tour de balão começaria às 5 da manhã. O quarto, confortável na sofisticação do que se lhe gabava em deluxe, era um discreto pedaço de céu. À francesa, estirei-me por sobre a macieza horizontal do grande colchão single, sentindo o corpo latejando de cansaço afundar no reparador conforto dos seus cetins. Um langoroso espreguiçar de gato mais tarde, reativei-me e, munido de uma toalha de banho, desci à piscina interior para alguns laps relaxantes. Quando tornei ao quarto, a excitação era tal que se me não abonou o descanso. Limitei-me a remansear pelos lençóis, revendo os planos para o dia seguinte. Seria recolhido ao Kaya antes do nascer do sol, e levado até à zona de descolagem. Assim foi. Horas mais tarde, perseguindo o extenso túnel da noite, chegava ao posto da «Ürgüp Balloons», estremunhado e feliz, onde os diferentes grupos de excursionistas se organizavam para a receção do briefing, e um pequeno-almoço à base de bolos e sumos era oferecido à discrição. Formando grupo com outros passageiros, foi-me atribuído um dístico e um shuttle para a zona de descolagem. À medida que batíamos estrada, víamos a horizonte, pelo quadrado das janelas sujas, a crista colorida de vários aeróstatos em processo de enchimento, ligados pela boca ao cano dos respectivos queimadores, subitamente iluminados na penumbra da madrugada por um breve espirro de fogo. Alguns modelos vogavam já pelo ar cinza-azulado, como estranhas frutas que pairassem alheias à força da gravidade e nos chamassem, tentadoras, para um paraíso de entre nuvens. Depois da fotografia em conjunto, subimos um a um, para o interior do cesto, onde nos foram explicadas as regras básicas e as medidas de segurança a reter durante o voo. Quando a felicidade é tantas vezes pervertida para os excessos da euforia, tão terrível, tão sinuosamente hipervalorizada pelo postiço das expectativas sociais, quando nada exclui aos seus bastidores um temperamento rude, áspero e insensível, digo com Wilde que “o suficiente é tão satisfatório como um grande banquete”, e prefiro-me a boa zufriedenheit da tranquilidade. Mas Stendhal tem a sua razão ao afirmar que a Beleza é uma promessa de felicidade. Assim que o piloto accionou o maçarico de ar quente, o coração largou em métrica descompassada, e aos poucos, muito suavemente, o enorme cesto carregado de expectativas despegou do chão para as alturas… 

II – Subia no ar, contado no número dos homens, observando a excitação e a alegria de quantos me rodeavam, participante pleno num cenário de Beleza indescritível; dei por mim a chorar de feliz como a criança para quem o mundo é uma constante feira de diversões. Suponho que me não tivesse sintonizado na frequência da continuidade histórica a que digo pertencer se a todo um sentido estético apurado por séculos de demorada evolução, me não tivesse educado a experiência do existir numa determinada lógica de elaboração emocional, tal como não teria abraçado esta estética se os rios da ancestralidade, a confluir no que trago de singular, me não tivessem predisposto as águas ao gosto de um certo toque salino (isto de ser Marinho tem que se lhe diga). A sugestão de Beleza impressiona-me como uma agradável légèreté de que se indistingue o exercício da minha própria respiração. Tenho vivido para a Beleza e pela Beleza das coisas – reconhecê-la e enfatizá-la no que vou percepcionando e experimentando, converti-o na paixão com que até agora tenho dourado a extensão das minhas horas. Na medida em que o meu esforço criativo se vaza nos moldes da encarnação da ideia através da forma em função da Beleza, a Beleza define-me como esteta. A atividade como esteta fez-me perceber que não há evolução pessoal sem o desenvolvimento de todos os canais, mecanismos e dinâmicas de expressão, que não existe vida sem criação e criação sem a possibilidade de transformação e reconstrução, e que sem estes elementos não há felicidade. Mais tarde, a Psicologia permitiu-me não só perceber-me dotado de todas as possibilidades para a minha auto-realização, e instrumentalizado internamente com todas as ferramentas necessárias para o desenvolvimento das minhas competências físicas, morais, pessoais, relacionais, sociais, intelectuais, interculturais, mas também ativá-las para ir actualizando uma versão cada vez melhor de mim mesmo. Quantos mais pés de altitude batia, mais envolvido estava no gozo da minha auto-atualizaão. Desde longe trago a atenção em alta a tendência para fremir pelas mais pequenas coisas, de me comover mais facilmente a propósito de qualquer minúcia, uma urgência analítica e insaciavelmente curiosa na operacionalidade das minhas faculdades cognitivas, uma necessidade premente de adquirir conhecimento, de ter a mente ininterruptamente ocupada, entretida a observar, a examinar, a perceber, a cruzar, a criar – um constante alerta de emergência, um querer ser muito, um querer ser tudo, e tudo ao mesmo tempo. De repente ali estava eu, rodeado de infinitos balões, réplicas de mim mesmo, repetindo-me até à eternidade, e tudo era uma expansão de peito para lá das possibilidades. Ganhava asas – voava, mais alto, mais depressa, mais além. Suponho que a grande batalha que trave seja então contra os desânimos do onismo, esse triste reconhecimento do muito pouco que conhecerei do tanto que há no mundo a conhecer-se. Suponho que tenha um bocadinho de Schopenhauer em mim ao defender que somos tanto mais quanto mais nos for dado a conhecer existir. Ganhar. No que der, quanto puder. Ganhar tempo, ganhar tino, ganhar-me o pão, ganhar a horas, ganhar nome, ganhar raiz, ganhar coragem – ganhar! – ganhar simpatias, ganhar-lhe o beijo, ganhar confiança, ganhar-lhe a confiança, ganhar a partida, ganhar a dianteira, ganhar-me a própria palma. Ganhar! A essa auto-atualização brindei eu quando aterrámos para a esperada celebração a champanhe, e nos condecoraram com medalhas. Seriam as 8, quando de regresso ao Kaya, saí para a esplanada do restaurante e me sentei, de perna cruzada, a reforçar o pequeno-almoço. Não dispunha de muito tempo até que o shuttle para a expedição me viesse recolher. Estava no átrio do hotel, displicentemente tamborilando os dedos por sobre o mármore do balcão, quando um trintagenário de feições mefistofélicas se me abeirou para me conduzir ao autocarro da expedição. Descemos a colina até ao centro de Göreme, e aqui, findas retorcidas voltas pelos vários stands, lojas e restaurantes, estacionámos diante da empresa «Flintstones», responsável pela organização. Leve, alegre e livre, sem dor que me não coubesse inteira na cuba de um dedal, fazia-me prestes de realinhar as costas contra as costas do assento, quando sem nada que lhe anunciasse a aparição, o vi pela primeira vez. Ao rapaz de Malatya.














quarta-feira, 19 de setembro de 2018

ISTAMBUL & CAPADÓCIA (2º. Capítulo: "Ser Contado Entre os Homens")

2: Ser Contado Entre os Homens

I - There is an old joke about two english men who were cast away on a desert island for three years. It appears they never spoke to each other. Because they haven’t been introduced”(1). Istambul conheceu-me partícipe da oposição à febre das aparências. Era ao Outro que queria –  a mover-me entre os homens, a segui-los, a pertencer-lhes. A ideia da nossa coexistência, tenho-o seguro, pressupõe que esta se desenvolva e realize no mundo, pelo que o próprio sentido existencial se torna dependente da chamada do Outro. Ponha-se pois que tudo é relação, que no princípio não é o eu, mas o Outro – um encontro anterior a toda a imemorial criação, não-violento por natureza, dois pólos equivalentes constituindo-se em perfeita reciprocidade, nenhum deles dependente ou submetido entre si. Pondere-se agora a patada de violência que os princípios racionalistas unívocos da filosofia ocidental desferiram sobre a alteridade; pondere-se bem o rombo que a antropologia dominada pelo ego perpetrou sobre a imprescindibilidade do Outro na formação do indivíduo. Não deixa de ser comitrágico como na sociedade supraindividualista que formamos, onde cada ação humana se vê mais e mais regida pela indiferença de todo um medonho sauf qui peut, que a mais transversal a todos os casos que atenda, e aquela que mais flagrantemente se revele – ainda que nem sempre por expressa declaração –, seja a necessidade de cada um/a ser amado/a, inteiramente ‘propium’, aos olhos do Outro. Com efeito, cada cliente que atenda é, em si mesmo/a, uma saudável declaração de dependência; as suas queixas são sempre queixas de fios relacionais ou demasiado apertados, ou demasiado lassos. E nós, vilipendiadores/as do nosso direito de primogenitura, curvamos, em vexado silêncio ao miserabilismo deste imenso segredo de Polichinelo, sem garra para virar o tabuleiro, sem espinha para afirmar o que queremos, sem tacões para defender o que precisamos. E empurramos o Outro para fora da moldura, deixando que se instale um espírito de manipulação e de instrumentalidade, que o relacionamento interpessoal perca o carácter direto e humano. Eu queria abraços. Múltiplos, torrentosos, em proporções de monção, para os que não houvesse guarda-chuva resistente. A todo o pano, em queda-livre, de malas e pé fincado, do alto à diagonal, até ao sufoco, até à xifopagia, até à fusão indestrinçável (da fusão sem confusão). Dos fortes, dos wrestlerianos, dos à la Godzila, dos das fábulas sem moral, dos que desalinham o make-up e despenteiam papelotes, dos que magoando um pouco os ossos se atiram, doidos, às portas da alma, que são trick and treat simultâneos. Abraços que se deixem entrar, nem sempre sem licença concedida, abraços party-crashers, de caroço e polpa cheia, abraços-medicina para a cura deste parvo higienismo sensitivo que a sociedade atual teima em disseminar no pavor de qualquer atentado ao seu eu logocêntrico. Os dias de hoje vêem-nos demasiado clivados entre espírito e matéria; estamos a perder a compreensão e experiência desta última como a algo sagrado, como algo a honrar e a fazer preito. “O culto dos sentidos tem sido frequentemente, e muito justamente, condenado, dado que os homens sentem um natural instinto de terror em relação às paixões e às sensações que parecem ser mais fortes do que eles, e de que têm a consciência de partilhar com formas de vida inferiores. Mas era evidente […] que a verdadeira natureza dos sentidos nunca fora compreendida, e que permaneceram indomáveis e animalescos unicamente porque o mundo procurava submete-los pela abstinência ou matá-los pela flagelação, em vez de procurar transformá-los em elementos de uma nova espiritualidade, em que um elevado instinto de beleza seria a característica dominante”. (Oscar Wilde). A morte do Outro adoeceu o afeto, fez-nos inaptos para o diálogo, deficitou-nos a socialização, estranhou-nos para o isolamento, deformou-nos a moral. Quando sincero, o afeto não sabe de alfândegas; quando real, não pode esmagá-lo nenhum carimbo de censura. Eu queria rematerializar o corpo, revincular-me ao grupo, tornar as relações interpessoais diretas e corpóreas, dar-lhes ‘xixa’ – ‘enxixá-las’. Neste exato estado de espírito, ressacado das últimas noitadas, visitar os Banhos Çemberlitas, instalados a meio caminho entre o Grande Bazar e a Praça Sultanahmet, pareceu-me a sugestão mais assisada. “Descendente dos banhos greco-romanos, o hamam (banho turco) foi adotado pelos invasores islâmicos, que acreditavam na proximidade entre limpeza e divindade; o banho era uma oportunidade de limpar a pele e desintoxicar o corpo, mas também de fortalecer o espírito”. Os banhos turcos de Çemberlitas, lera-o no guia turístico, haviam sido encomendados a Sinan, em 1584, por Nur Banu, esposa do alcoólico Selim, o Ébrio – filho de Solimão e Roxelana. Após um almoço farto em Karakolhane (chá, galinha marinada em mel e sésamo e cikolatah irmik tath, para sobremesa), parti de ferry para Karaköy e apanhei o eléctrico até Sultanahmet. Durante alguns minutos, postei-me silenciosamente entestando a fachada, e depois de um cavo suspiro de encorajamento, avancei para a porta. 

II - À minha esquerda, vencidos os primeiros degraus, aninhava-se na penumbra um pequeno balcão e, por detrás dele, uma jovem de maneiras solícitas assegurava a receção da clientela. Escolhi o serviço completo de atendimento (massagem exfoliante, massagem de espuma e massagem de óleo), depois do que me foram entregues duas senhas (a confiar aos funcionários que me atendessem), e uma chave de acesso à cabine para a muda de roupa. Chegado ao átrio, espiparam-se-me os olhos ao assalto de três andares avarandados, de onde pendiam múltiplas toalhas coloridas, todos eles percorridos de cabines, um barbeiro, e uma sala de convívio. Segundos depois, pronto a guiar-me à cabine, um sujeito voluntarioso, de bigodinho en brosse e expressão tensa, entregava-me um par de chinelos, uma toalha branca e um pestemal às riscas vermelhas e brancas. Já despido, de pestemal à cinta e chinelos aos pés, tornei ao átrio de onde passei portas para a Sogukluk (a Sala Fria), e desta para a sumptuosa Sala de Vapor, toda ela mármore salmão, paredes e tetos, com um gigantesco palanque octogonal ao centro (o göbek tasi). Ao estender-me sobre o octógono aquecido, esperando ser servido, tornei a vista para o teto em cúpula, apoiado em 12 arcos erguidos em colunas de mármore, furado por «olhos de elefante» em vidro, que canalizavam a luz através do vapor para o chão. À volta, em quatro cubículos privados (os halvets), encontravam-se bacias de pedra com torneiras de água fria, morna e quente. Não tardou muito, até que um sujeito barrigudo, de olhar astuto e sorriso trêfego, iniciasse a massagem exfoliante, a que depois se seguiu a de espuma. «Sit», «Lay», «Turn», «Sit», «Lay»... Esfregado e resfregado, a compasso das suas monossilábicas ordenações, o meu corpo tomava-lhe nas mãos uma flacidez de puppet desconjuntado. Por fim, desempenhadas as esperadas funções, volveu num cauteloso inglês gutural: «No problem? No problem?». Estatelado contra o mármore, vendo-o de baixo como a uma imagem santa, pestanejei de mal acordado. Que dizia ele? Entortei o cenho na penosa expressão de quem se esforça para compreender um enigma; dando conta da minha ruga, puxou de alternativas e tentou o germânico «Gut? Gut?». Fez-se enfim compreendido. Sim, aplaquei-o: «All good. Teşekkür ederim». Sequenciando a minha aprovação, apontou para o dístico numerado que enroscara ao laço do pestemal e piscou-me o olho. Embora inseguro, sorri cumplicemente, como concordasse, e dali seguimos para a Sogukluk, onde me sujeitou a vários baldes de água fria. Fui então introduzido numa outra sala, contígua àquela, onde um novo funcionário me deitou pela extensão de uma marquesa, para a massagem a óleo. Quando por fim me reposicionou perpendicular ao chão, ardiam-me os músculos, mas uma lassidão boa de relaxado punha-me no espírito uma paz de serenidade. Ao despedir-se, também ele apontou para o dístico que trazia ao pestemal, os olhos luzindo de ganância; e quando do duche à cabine, passei ao átrio, encontrei-os a ambos, num cerco de abutres cobiçosos, cruzando braços, expectantes, à coca de gorjeta. Para sua exultação, decidi cumprir o que sugestionara. Depois, mais pobre de carteira, sentei no átrio a beber um sumo de romã e laranja, pensando nos próximos passos. Corporeamente renovado, voltei ao sol de Sultanahmet, e liguei a Umur para sondar a sua disponibilidade. Combinámos que o alcançaria em Kocamustafapasa; depois de uma longa viagem de autocarro, acabaríamos por assentar em sua casa, e encomendarmos uma pizza. De pernas estiradas pelo sofá, cada um abocanhando o cilindro do seu Marlboro, passei em revista a minha experiência nos Banhos, e Umur contou-me do trabalho que conduzira no hospital. A conversação resistiu durante horas, até aos primeiros cabeceares de sono. Quando Umur me levou à paragem de autocarro, despedimo-nos num longo abraço. Não mais tornaria a vê-lo até ao regresso a Portugal. Dali, regressaria à praça de Taksim, e de dolmus voltaria à zona oriental. Já em casa, Sedef e Mesut esperavam-me para uma última cerveja. Grande era o cansaço, mas mais excitavam as infiniformes possibilidades que o amanhã me reservava. Aos poucos fechei os olhos... 























[1]Há uma velha piada acerca de dois ingleses que haviam naufragado numa ilha deserta, durante três anos, sem nunca terem falado um com o outro – pois não haviam sido apresentados” (T.d.A.)

ISTAMBUL & CAPADÓCIA (1º. Capítulo: "Pelos Lares dos Meus Amigos - 2ª. Parte")


 Pelos Lares dos Meus Amigos (2ª. Parte)

IV – Cheguei trôpego e esbaforido a Eminönü, onde o cheiro forte a pretzels e sanduíches de peixe se abobadava enjoativamente sobre o trânsito frenético das multidões. Bien entendu, não há medalhas que condecorem a estupidez, mas como se diz de outros infelizes, os que não são heróis de um ideal, serão heróis de si mesmos. Dilatando então um peito muito heróico, tomado não sei por que esdrúxula ufania, achei-me certo de orientações, perfeitamente capaz de prescindir de ferrys e metros no regresso a casa. Ignorando bússolas e cartografias, avancei galopante por sobre o Corno de Ouro, acompanhando de olhar mortiço a fila de pacientes pescadores debruçados para o azul, e chegando ao bico da Ponte de Gálata, meti peremptório para a direita, confiante que já na parte oriental de Istambul, ao cabo de uns curtos atléticos quilómetros, depressa chegaria a Kadıköy. Mal sabia que aos ouvidos do meu fado, Constantinopla segredava a traquina e zombeteira: “Pescador tão entretido / Numa pedra ao sol, / Esperando o peixe ferido / Pelo teu anzol, / Há um fio do céu descido / Sobre o teu coração: / De longe estás sendo ferido / Por outra mão.” (Cecília Meireles). Como resultado da soberba, caminhei horas a fio alheio às minhas coordenadas, tropeçando de fome e de cansaço, incapaz de parar, movido pela vaga expectativa que aos perdidos entretém o passo, de que o destino triunfaria ao virar da esquina. Mas ai de mim, cada esquina que virasse não girava senão para a desilusão, e a desilusão para o desânimo; incapaz de fintá-lo, levantou-se-me aos borbotões um arreliado humor que a todos queria soltar cães aos calcanhares. Polícia algum me valeu ou taxista – fazendo gestos onde o inglês não saía, todos teimavam no mesmo: Kadıköy parecia ficar “do outro lado”. Ora se do outro lado tinha eu vindo, como podia ser que tivesse de atravessar novamente? Anoitecia sobre Istambul e eu rogando trinta e sete pragas à cidade, com Sedef à minha espera para o aniversário de 30 anos de Beylem Gürsoy, amiga que partilhávamos em comum, a bateria do telemóvel rasando o turning off. Valeu-me, à distância, a ajuda de quem me localizasse através do Google Maps, e uma rendida chamada à minha anfitriã, para enfim perceber o medonho logro que havia cometido: além da divisão leste-oeste, a parte histórica do lado europeu é dividida no sentido leste-oeste pelo Corno de Ouro, porto natural e estuário de uma ribeira orientada no sentido noroeste-sudeste, situado a norte da península histórica onde foi fundada Bizâncio (o Cabo do Serralho ou Sarayburnu, atual distrito urbano de Fatih). Achando que transitava já para o lado asiático, não tinha feito mais que atravessar para a outra metade do lado europeu. Eram as 19h quando de Karaköy atravessei, bulindo de frustração, para Kadıköy. De pronto, porém, um sorriso me alargou os beiços ao ver Beylem esperar-me no cais. Acorri-lhe num abraço, e a passo lesto, excitado e palavroso, partimos por uma muito movimentada Kadıköy nocturna, recordando as longínquas aventuras em solo português. Amesendámos no Çiya Restorant para as delícias de um meze, de um türlü, keskek e bulgur pilav, depois do que rumámos em flecha para o Muaf, onde as bebidas circulavam já entre os convivas da festa. A quase trintagenária foi recebida com gritinhos de entusiasmo, beijada por quantos circundavam a mesa, e mimada de presentes, incluindo uma pequena tabuleta de papel onde se podia ler: HAYAT 30'DAN SONRA BASLAR (“a vida só começa aos 30”), e dois gordos balões em forma de «3» e «0». Seguiram-se as pilhérias, um mais sonoro restolho de copos em brinde, o bolo de aniversário, o cantado “mutlu yıllar sana mutlu yıllar, sevgili Beylem mutlu yıllar sana”, as intimidades zonzas do álcool, e em pouco tempo, o passo saltitante de bar em bar, à procura de mais gozo e diversão. Parámos primeiro no Kadıköy Sahne para assistir a um concerto, movemo-nos depois para o famigerado Pendor Corner onde não só conheci as dores e as delícias de um Bitch in Town, como também, aos pares, nos batemos em competição para ver quem bebia mais rapidamente o seu shot de hönönö. Pelo caminho, aos encontrões de embriaguez, Baylem deixou escapar o seu «0», e pouco mais à frente, o seu «3»; em desmanchada risota, fazendo comédia do sucedido, houve quem gritasse "You're ageless now". Por último, adentrámos o Dorock XL, a poucos metros de distância, para dançarmos o after party. Ali, pude reavaliar a sensação de vazio que a subida a Sultahnamet me provocara – estava agora repleto, estava de novo feliz. Percebi, por fim, a enigmática associação que o inconsciente me fizera ao «Centeio que Mata». O pitoresco e o colorido de que tanto se ouve falar põem num ocidental a expectativa de vir à Turquia assistir a um espetáculo exótico. O visitante distrai-se com a história dos trajes pitorescos, dos palácios dos sultões e dos seus altos funcionários, com o exotismo das populações e com os monumentos e não vê mais nada. Mas “o pitoresco é devido, quase sempre, ao atraso social, a elementos primitivos e, muitas vezes, à miséria do povo”; o pitoresco serve “para ocultar a verdadeira fisionomia de Istambul”, quando o que se quer é uma cidade sincera, humana, em que o valor do homem não esteja no seu pitoresco, mas no facto de ser homem. Todos ouviram falar numa Istambul maravilhosa, cheia de riquezas e de esplendores. Mas, basta ver o que ela ainda é, mesmo depois do muito que fizemos ultimamente, para se avaliar o que seria na época do sultanado. Tinha muitos templos e palácios, é verdade, e, por isso, se confundia a parte com o todo” (Ferreira de Castro). Era sobre esta expectativa que meditava. Era este o espetáculo de façades que recusava aceitar no imaginário: queria antes a crueza e sinceridade do humano, queria a gargalhada sonora da convivência com o Outro real, calcar aos pés toda a inútil falsidade das idealizações ingénuas. «Here's the church, and here's the steeple / Open the door and see the people…». Alto ia o riso, esquecendo de Istambul as suas matreiras prestidigitações, e ao pião do corpo deixei-o que rodasse e rodasse e rodasse, como um darviche em ato devocional à alegria de estar vivo, até eu e a noite nos fundirmos a nível quântico e sermos um són nuclearmente…

V – Conquistada a consciência desta benfazeja abertura, não estranhei que quisesse apressar-me a garantir a companhia de Umur, no dia seguinte. Acordando da ressaca com a alegria de alguém que se vê chegar ao ponto de Arquimedes da idade de um homem num renovado mote de vida – HAYAT 33'DAN SONRA BASLAR –, atravessei de novo o Bósforo para me encontrar com Umur em Eminönü; seguimos depois para os arruamentos de Fahti, onde nos sentámos a almoçar um Shish Kebab de frango. Ao cabo da refeição, acariciando a crescente proeminência abacial da barriga recém-satisfeita, deitamo-nos a passear calmamente pelo bairro, passando círculos de istambuliotas sentados a beber chá e café, e a saborear talhadas de melão pela rua. Gatos por todo o lado. Atravessámos a pé para Karaköy, pela Galata Köprüsü, de onde o meu amigo me deu a conhecer os portentosos interiores de Salt Galata, a conhecida instituição de arte contemporânea. Poucos metros adiante, subimos as Escadas Camondo em direcção à Torre Gálata. Àquela hora, a praça pulsava de agitação, pelo que decidimos sentar à sombra de um café, altura em que aproveitei para partilhar com ele os meus recentes insights sobre Istambul. Toda a criação, disse-lhe, se arrasta de pólo a pólo num altissonoro vagido de dor parturiente; segue-se que as delícias libertadoras do alívio se sobreponham à última contração expulsante, quando para nosso regaço tomamos, por fim, o produto criativo na sua versão derradeira. E o que é lei de vida é lei na arte: da penumbra do imaginário criador, amadurece e cai no mundo um algo de novo, objeto de luz, extraido do inexistente, que agora se soma à realidade maior para ser apreensível pelos demais. Na obediência a este movimento centrífugo, não só a criação valida a nossa pertença ao mundo, como retroaje sobre a nossa subjetividade individual, reafirmando-a. Eis porque a criação é, inescapavelmente, um processo relacional – mesmo que não interativo, i.e., não objetivamente exposto ao olhar dos outros. Na minha experiência, há um sentido de missão que me transita do sonho para a dor, que me leva da dor ao alívio, e é de querê-la cumprida que recai sobre cada andamento do processo um febricitante feitiço de prazer. Ainda assim,expressões artísticas como a escrita de literatura ou poesia podem ser bastante solitárias. ‘Chá de Bonecas’, tal como o seu antecessor, ‘A Casa do Passado’, presta-se a exemplificar bem esta realidade. A despeito de me terem valido um primeiro prémio de concurso literário, e constituirem um marco no percurso da minha afirmação pessoal como criador na área das letras, são hoje artefactos menos excitantes, obscurecidos pela atualização da minha própria maturidade emocional. Na verdade, quanto mais acorro às solicitações do mundo externo, expliquei-lhe, menos apelativo vejo o isolamento a que a criação me vota. Não surpreende assim que um dos meus mais gratos prazeres o encontre em partilhar as rédeas do processo criativo com outra pessoa. Tal foi a oportunidade de ‘Suficiente Solidão’, projeto de cruzamento entre vinhetas literárias da minha autoria, e homólogas ilustrações a punho de Umur. Além do gozo de trocar o silente monólogo da produção tipicamente eremítica pelo activo confronto dialógico entre ambos, de me sentir rumo ao encontro do outro, ser inspirado pelo outro, e derradeiramente encontrado pelo outro, o projeto permitiu-nos uma sadia evolução conjunta, em sintonia com a moral da história (pois na altura, éramos os dois vítimas de um coeur brisé), eternizando-se em história viva, para lá da categoria de mero happening, continuando ainda hoje nas constantes renovações da nossa amizade. Se no tempo do ‘Chá de Bonecas’ fruia de atrever uma forma de eternização contra a noção da minha própria finitude – com efeito, as únicas coisas que restam e lembram todas culturas anteriores à nossa são os seus escritos –, e a ânsia maior se constelava em torno do produto final, com ‘Suficiente Solidão’ passei a recitar o famoso credo horaciano, a não querer da imortalidade jura alguma de boaventura, a deixar os caminhos da glória, da graça e da gravidade partirem audaciosos sem mim, preferindo antes do processo, o gosto da companhia humana que me faz os dias mais presentes. De preferência amesendados. Assim – tal e qual como estávamos os dois, naquela morna tarde de domingo, em feliz confraternização, defronte à Torre Gálata. Algumas horas mais tarde, subíamos já pela longa avenida Istiklal, onde nos entretivemos a explorar lojas vintage e comprei uma caixa de lokum, a inebriante sobremesa turca feita de amido de milho e açúcar, coberta com açúcar de confeiteiro. Seguimos até à praça de Takshim, rumorosa ao som da chamada à oração gritada pelos altifalantes das mesquitas, e depois para Cihangir; aí, numa qualquer rua, sentámos a cantarolar. Já noite densa, despedimo-nos com um abraço forte antes de eu saltar para o ferry e voltar a Kadıköy. Trazia música nos cabelos e açúcar de confeiteiro nos dedos. Sorri para a avenida negra do Bósforo cujas águas me levavam, seguro, de regresso ao lar dos meus amigos. Como é bom, pensei de mim para mim, como é bom ser contado entre os homens…










terça-feira, 18 de setembro de 2018

ISTAMBUL & CAPADÓCIA (1º. Capítulo: "Pelos Lares dos Meus Amigos - 1ª. Parte")


 Pelos Lares dos Meus Amigos (1ª. Parte)

I – Ao cair da tarde do passado dia 7 de Setembro, dei por mim languidamente recostado no assento de um avião da Turkish Airlines, planando de sorriso aberto por sobre o azul-profundo das águas internacionais do Çanakkale Boğazı, rumo às glórias e aos esplendores da antiquíssima cidade que Napoleão tomaria para capital se houvesse um só país no mundo – Istambul, a remota Bizâncio, a velha Constantinopla, a Metrópole do Esplendor, colorida e pitoresca, habitada há, pelo menos, 5000 anos, a Porta da Felicidade que se me infiltrara no imaginário menino desde a leitura d’«Um Crime no Expresso do Oriente», e que a partir de 2011, no contexto da folia social académica, se retonificaria mais seriamente pela mão das amizades turcas que estabeleci em contacto com outros Erasmus. Desta mística cidade de sonho, sabia-a apenas ocupante simultânea de dois continentes, como se das margens do estreito do Bósforo às do norte do mar de Mármara, quisesse vir vincar a importância da integração no uno; depois do contraste de Atenas, e “do equilíbrio entre o divino e o pagão em mim”, semelhante ideia concentrou-se de grande significado, e foi assim que da janelinha do avião em curso, me fugiu o sangue aos cofres do coração quando principiei a divisar as ribanceiras dessa que os gregos chamaram, durante a Idade Média, Vasilevousa Poli, a “Rainha das Cidades. Para 7 dias em solo turco, concentrei a bagagem em dois robustos backpacks, e no interior do mais pequeno, um guia de viagem por Melissa Shales, entretelado de mapas, referências e códigos sobre os quais, em boa verdade, pouco demorara a vista. Esta atitude nada tinha de impremeditado; com efeito, decidira lucidamente contrariar a abordagem ordenada e metódica que soía seguir na preparação de cada viagem, para ter-me desprevenido e aberto à surpresa. Semelhante fora o vívido conselho da minha amiga Floriane Cally, que em finais de Fevereiro último, surpreendera de visita pour faire le Portugal antes de tornar a Inglaterra; estávamos amesendados no pátio da Rota do Chá, em plena Miguel Bombarda, e por entre lentos goles de um Matcha gelado, aproveitei o ensejo para lhe dizer o quanto me amedrontava subaproveitar a ida à Grécia, por então ainda a descobrir (“A Atenas que em tão pouco tempo tão cruelmente me impunha descobrir e possuir inteira”). Calma e descontraída, encorajou-me a aceitar essa aventureira impreparação como estratégia para melhor fruir do presente. Não pude aplicá-lo a Atenas, mas decidi fazê-lo em Istambul. Floriane, Floriane, ma chère, minha querida, o tanto que te devo…

II – Aterrei no labiríntico Atatürk a dez ou quinze minutos das sete, e sem fio-de-Ariadne que me valesse à desorientação natural, acabei batido de impaciência calcorreando o aeroporto de trás para a frente, num vaivém de passos aracnídeos, alternando sucessivos culs-de-sac com seguranças deploravelmente ineficazes na assistência em inglês; ao cabo de um impreciso número de minutos, muitos mais do que os que desejaria admitir se terem transcorrido, cheguei palpitante, num prolongado suspiro de alívio, ao amplexo do meu amigo e parceiro de artes, o cipriota Umur Güven, postado do lado de lá das arrivals, com um cartaz em mãos para que nele lesse e risse: «O Pirralho». Era este o tipo de cómica pilhéria a que Umur me habituara desde os primórdios da nossa relação, quando o conheci no penúltimo comboio de São Bento para Braga, e de partilha em partilha, ao longo dos restantes quinze dias da sua vinda a Portugal, nos unimos para trazer ao Estúdio 22 a memorável «Suficiente Solidão». Desde a feliz ocorrência, já muito caminho havíamos feito; na verdade, o último encontro datava-nos da minha visita a Londres, em Julho do ano transacto, como resposta ao seu convite para um getaway de fim-de-semana; pouco havia mudado nele, exceto talvez um maior cansaço sobre a aparência e uma maior dureza de feições, sem dúvida atribuíveis ao exigente trabalho que agora conduz no Cerrahpaşa Medical Faculty English Programme. De Atatürk, já noite, apanhámos o metro para o vasto e cosmopolita distrito de Kadıköy, antigamente designado por Calcedónia ou Chalkedon. Aqui, encabeçando uma fileira de espaços comerciais desde o extremo norte da animada Karakolhane, está agora para arrendar um estreito mas cómodo apartamento abaixo do nível da rua; foi aqui que até há poucos dias, a minha amiga Sedef Çelik e o namorado Mesut Güneş me anfitrionaram na parte asiática de Istambul por 5 noites. Tendo Umur por timoneiro, segui ao longo de estreitos arruamentos à procura do número 101. Se inclinados sobre o gradeamento externo das janelas, passando o micro-perfurado da rede que lhes encaixilha as vidraças, qualquer par de olhos poderá espreitar por singelos cortinados de linho branco, para o interior de um moderno ninho amoroso, essencialmente decorado a mão feminina, ajoujado de souvenirs e de bugigangas várias. À medida que descíamos a curva de escadas pela escuridão do prédio, percebi-me na antecâmara de uma inescapável necessidade: refamiliarizar a amizade cujo contacto presencial descontinuara faziam já 7 anos. Em pouco tempo, porém, amorosamente apertado nos braços da minha risonha anfitriã para lhe beijar as adoráveis covinhas, vi dissolver, já seguro, todos os lúgubres cuidados que me confrangiam o peito. Por seu turno, das nuvens pálidas baforadas ao cigarro eletrónico, Mesut veio cumprimentar-me num caloroso handshake, exortando a que lhe tomasse a casa como à minha própria. Mas de certo que incurialmente lhe estimei as cortesias, pois que ao avançar do hall de entrada para pousar os backpacks no tapetão da sala, um susto de três vozes alarmistas me apostrofou em uníssono: «Tira os sapatos!». Estremeci, embaraçado por infringir a etiqueta islâmica, girei nos calcanhares, sentindo-me corar de pólo a pólo; depois, gaguejando a minha mais esforçada apologética, apressei-me a ficar em meias. Não lhes tardaram as simpatias a deslaçar-me o nó do constrangimento, e entre risos soltos, gozando das mesuras da sua mais solícita hospitalidade, sentámos para uma adorável conversa por entre as almofadinhas do sofá. Uma hora mais tarde, depois de desfiar longos rosários de memórias, voltámos a Karakolhane para jantar um farto wrap de kebab e um copo fresco de ayran espumoso. Fomos depois a um dos múltiplos bares da rua, a essa hora percorrida pela ridente juventude noctívaga, para alguns goles adocicados de Hoegaarden; íamos lançados na revisitação de memórias, gracejando nostalgicamente sobre este e aquele episódio da nossa história conjunta, quando no atirar de uma gargalhada forte, o pescoço se me inclinou para o alto e de pronto interrompi a conversa para admirar ao edifício a inesperada ausência de telhado. Aturdido pela subitez do meu olhar espavorido, Mesut franziu o sobrolho e Sedef apressou-se a explicar entre sorrisos: “Ele é assim – ele é poeta” (nessa noite e nos dias que se lhe seguiram, a frase tornar-se-ia numa das mais cómicas boutades a meu respeito). Já fim-de-semana, a noite prosseguiu na correnteza da mesma relaxada disposição, até Umur fazer a sua despedida de volta à Istambul europeia. Regressados ao 101 de Karakolhane, para renovar brindes à amizade, deram-me Sedef e Mesut a provar uma das suas muito orgulhosas produções de cerveja caseira, abrindo espaço para que nos reuníssemos à viola a cantar Sezen Aksu e Yıldız Tilbe, num hino ao nosso feliz reencontro. Do riso à lágrima, o serão musical prolongou-se até perto das 4 da manhã, altura em que o casal, fazendo as suas despedidas, se recolheu ao quarto, e me deixou acomodado ao sofá, já pesado de sono e de cerveja, sentindo o peito quente de muita comoção. Talvez tenha compensado, julguei de mim para mim, seguir o conselho da querida temerária Floriane. Cheguei ao queixo o lençol que Sedef me deixara dobrado sobre o braço do sofá e olhei pela janela aberta para o empedrado da rua, então traçado de transeuntes a quem só via a sola dos sapatos. Sorri nas minhas considerações. "A vida do outro, a casa do outro, o coração do outro... são todos templos sagrados que se pede licença para entrar. Licença essa, concedida depois de instalada a confiança, o carinho, a verdade”. Tornei então para o amontoado de sapatos à entrada, e enquanto escorregava para o sono, sorri repetindo até adormecer: “Solo sagrado se pisa descalço. Solo sagrado se pisa descalço. Solo sagrado se pisa descalço. Solo sagrado se pisa descal…"[1].


III – Era meio-dia em Istambul oriental quando pelas frinchas da gelosia o tímido sol de sábado me veio descobrir a pestanejar de ensonado. Mesut, soube-o então, despertava apenas depois do café caseiro; como tal, esperámo-lo saciado, já em animada cavaqueira, para enfim sair e entestarmos um bom kahvaltı por Karakolhane. Era queijo, era salada, simit, batatas e ovo, chocolate, e mel, e pekmez com tahine, e azeitonas, e chá, e o famoso sucuklu yumurta (ovos com ‘chouriço turco’) – o tabuleiro, tapete mágico em voo alto, estendia-se para lá da Dimensão, e nós com ele, entre um e outro Parliament, rolando altissonoras interjeições de regozijo, entretinhamo-nos a conversar sobre todas as deliciosas ninharias da vida ordinária em Istambul. Ali, entre um gole de türk çayi e uma folha de queijo embebida em mel, fiz os planos para o dia: cruzar o Bósforo, partir à descoberta de Sultanahmet, em Istambul europeia, à caça do Grande Bazar, de Haghia Sophia, da Mesquita Azul, e do Palácio Topkapi. Despedi-me aos abraços de Sedef e Mesut, meti cantante por uma das vielas rumo ao cais de Kadıköy, disposto a viver toda a cidade, mas numa imprecedente lassidão de movimentos, sem os apressados nervosismos da ansiedade, fruindo de cada passo, cada fachada, cada relâmpago de gato cruzando a rua, esbarrigado pela gula que me atirara, de beiços relambidos, ao escândalo gastronómico do pequeno-almoço em Karakolhane, até avistar ao longe o magnífico Bósforo, em cujos canais – reza a lenda grega – a bela Io terá nadado, transformada em vaca, para escapar à praga de mosquitos enviada por Hera, com quem rivalizava o afeto de Zeus (daí, supõe-se, o nome «Vadear da Vaca» atribuído a este elo de união entre o mar Negro e o mar de Mármara, com um comprimento de aproximadamente 30 km, uma largura de 550 a 3000 m, e uma profundidade variando de 36 a 124 m no meio do estreito). Do céu cendrado começou então a tremer um friozinho de chuva molha-tolos; vencendo multidões, cinco liras mais tarde, abriguei-me no convés do ferry com o anorak azul zipado até ao pescoço. “A todas as horas, numerosos vapores fluviais abalam da cidade para a viagem inesquecível. (…) O Bósforo parece, por vezes, avenida líquida, comercial aqui, com o imenso tráfego da sua navegação, e de residências acolá, tornadas românticas pelo ambiente poético que domina tudo”(Ferreira de Castro). Encarei o horizonte, estirado da ponta do assento, em palpitações turísticas de querer chegar mais depressa à outra margem, pondo já Haghia Sophia na airosidade e beleza solitária dos minaretes e cúpulas que divisava ao longe, por entre ramagens bizarras, para depois compreender, num oco abatimento de desilusão, que o que via eram afinal adornos de mesquitas menores. “Nesta cidade despenteada e de venerando semblante, erguem-se, isoladamente, algumas maravilhas da Arte, que contrastam, na sua soberbia, com a modéstia do todo. E também existem alguns palácios, exteriormente medíocres, mas plectóricos de riquezas de outrora. É o pretérito de sangue e oiro, a opolência dos grandes senhores, que deu aura de fulgurância a uma cidade que, em realidade, e nunca a teve colectivamente” (Ferreira de Castro). Com o tempo, aperceber-me-ia que Istambul não só se não revela logo na sua inteireza, como frui de enrolar, prestidigitar, emaranhar, baralhar, e fazer crer no que não é; como sói acontecer a tantos impreparados turistas, também eu cairia nas suas armadilhas, uma e outra vez. Já mais próximo do cais, o coração retumbava-se-me num badalo de sangue excitado – podia ver agora, desde o porto de Eminönü, atirada para as alturas do Sarayburnu (ou Cabo do Serralho), a egrégia arquitectura da Sagrada Sabedoria. Desembarcando em Karaköy, já a chuva caía grossa, decidi furtar-me ao eléctrico, e avancei a pé para Sultanahmet, subindo rumo ao Grande Bazar, pelo labirinto de pequenas ruelas, onde inúmeras bancas se alinham para a venda de tapetes, roupas, legumes e souvenirs, à volta do mercado aberto. Passei prédios enegrecidos e semiarruinados pelo tempo, sentindo a aflita populaça abrigar-se da chuva por sob os estreitos beirais, seguindo jovens vendedores descalços que se afadigavam a montar barricadas de madeira contra a enxurrada corrida rua afora, e crianças alheias a toda a preocupada azáfama adulta, brincando a chapinhar alegremente na correnteza da cheia. Não pude senão sorrir; sentia-me feliz. Mas quando metros à frente cheguei à enorme vereda da Sultanahmet Istanbul Üniversitesi, abateu-se sobre mim um cansaço tremendo, inexplicável, e uma vaga sensação de estranheza, como se algo tivesse sido deslocado do seu elemento natural. Ocorreu-me, sem perceber por quê, uma tirada da adaptação de «Centeio que Mata»: “Have you noticed how nothing is really what it seems? The furniture is supposed to be Louis VI, but is has been made in Birmingham; the paintings are supposed to be venetian, but they were probable done in Chelsea last week. Nothing is solid or real. As if the whole house and everything in it was some kind of gigantic fake”. Intrigado pelo puzzle deste súbito pensamento intrusivo, acelerei o passo de regresso ao que ali me trouxera, e pus-me a vaguear de trás para a frente, na exploração dos recessos. Pouco depois, passando a Porta Beyazit, reconstruída após o terramoto de 1894, marcada com o tughra do sultão Abdül Hamit II e a feliz certeza de que «Deus ama os comerciantes», avançava já pelas arcadas coloridas do opulento Kapali Çarsi (o Grande Bazar), fundado em 1461 pelo Sultão Mehmet II para ser o coração do comércio do Império, e deitei-me a caminhar ao longo das suas numerosas montras iluminadas, absorvendo cores e cheiros e movimentos, cruzado dos terlikçiler (fabricantes de chinelos), dos aynacilar (fabricantes de chinelos), dos yorgancilar (fabricantes de colchas) e dos kazazcilar (fabricantes de fio de seda). Ainda assim, cismático, apesar de toda a distractiva estimulação, a críptica estranheza persistia. Cruzei Sultahnamet até à praça quadrilonga do famigerado Hipódromo bizantino, tendo por cabeça Santa Sofia, e à esquerda, a Sultanahmet Camii (Mesquita Azul). Tornei para Ayasofya e para os seus seis majestosos minaretes, onde uma vez mais descalcei para entrar. Já no interior, os olhos alastraram-se-me por 20 143 faiscantes azulejos íznik azuis, em 70 estilos diferentes, enquanto os pés avançavam pelas flores unidimensionais do alcatifado, numa lentidão de entusiasmo a emurchecer. Com vagar, tornei aos jardins floridos que cercavam a Mesquita Azul. Esta obra, dizia-me Melissa Shales, fora encomendada pelo sultão Ahmet I, com apenas 19 anos, e construída defronte a Haghia Sophia para enfatizar a supremacia do Islão sobre o Bizâncio Cristão. Fraternizante com um orgulho que pisava aos pés toda a mesquinhices da imposta soberba, olhei com desprezo para os 4 minaretes da Mesquita Azul, e devolvi à Sagrada Sabedoria um sorriso cúmplice, protector. Mas à sombra das florescências cor-de-rosa, a estranheza que me vinha obscurecendo o peito, adensava-se agora num agastamento de tédio. Sentei-me num banquinho a descansar. Ali estava eu, turista ocidentalíssimo, engrandecido de riquezas pelo privilégio de um euro forte, a 3700 km de casa, deliciado na contemplação de alguns dos mais belos exemplares da criação humana, senhor de mim e dos meus desejos, ainda assim insatisfeito, a braços com um enigmático vazio interior que por dentro pisava e repisava a mesma indecifrável linha da adaptação do «Centeio que Mata» – “As if the whole house and everything in it was some kind of gigantic fake”. Ainda me animei até às portas de Topkapi, mas não houve inspiração que incentivasse a mais. Espiralando em tautologias, tornei a furtar-me ao eléctrico e lancei-me (jurando para nunca mais) na imprecatada descida a pé desde o Hipódromo até ao cais de Eminönü. Foi ao refolhear o guia turístico que algo na foto de Haghia Sophia me prendeu a atenção: surpresa das surpresas contei-lhe apenas 4 e não 6 minaretes. A ruga da intriga não demorou a diluir-se numa expressão de pasmo. Só aí me apercebi da vexatória tromperie que Istambul preparara para me enganar: a Ayasofya que julgara ter visitado não era Ayasofya, mas sim a Mesquita Azul. Apreciando uma em detrimento da outra, pusera-me a cidade a adorar falsos deuses. Fechei o guia turístico com uma gargalhada. «Maldita Istambul» rugi entre dentes.


























[1] Gi Stadnicki