domingo, 24 de fevereiro de 2019

BERLIM (Último Capítulo: "Ausente na Primavera")

III – Ausente na Primavera

Apaixonar-me. E não poder consumar o desejo, senão a expensas de perder a minha preciosa condição de imortal… Por entre as copas de Tiergarten, a estátua da Vitória de Friendrich Drake resplendia ao sol matutino, arrebitando Siegessüle numa tocha de fogo dourado. Aos/às cinéfilos/as não escapará saber que a «Goldelse» é uma das perspetivas do anjo Damiel sobre Berlim, no lendário filme de Wim Wenders, «As Asas do Desejo». Enquanto caminhava paralelo à Strasse des 17. Juni, calcando as folhas secas das bordas de Grosser Weg, fotografando Narcisos que se procuravam em lagos que eram céus, pensava no extraordinário sacrifício de Damiel, no tanto de emoções que Marion lhe haveria inspirado, e no anjo caído que o ajudara a transitar entre dois mundos. Pausei entestando o solitário horizonte do imenso parque. O eco mental repetia: Dois mundos. Dois mundos. Dois mundos. Haverão sempre dois mundos, ajuizei para mim mesmo; tal como será sempre necessário um anjo caído, em nós, que nos ensine a equilibrá-los. Em Berlim deixava os cumes da fantasia; fizera-me a carne que ainda não era - ou não era mais totalmente. Como um fragmento de ecdise, a minha resistência ruía, e o susto com que agora trocava a imortalidade pelo que houvesse de mais real arrepiou-me de Vida. A súbitas, um fio escarlate serpenteou por entre o novelo das minhas cogitações – Joan Scudamore, e o terror do esquecimento.

Joan Scudamore é a heroína de «Absent in the Spring», autorado por Mary Westmacott, e descrita por críticos como “a seemingly invincibly smug and complacent provincial English matron in her late forties with a lawyer husband and three adult children (“Oh, no, my dear.  I'm a very busy woman in my small way.  I'm the Secretary of the Country Gardens Association. And I'm on the Committee of our local Hospital.  And there's the Institute, and the Guides.  And I take quite an active part in politics”). Joan regressa a Londres, por terra, vinda de visitar a filha a Bagdade. O romance principia com o encontro entre a heroína e uma velha amiga da escola, a boémia e mundana Blanche Haggard. Num ato de quase previdência, Blanche especula sobre o que Joan faria se ficasse presa no Iraque, devido às péssimas condições climatéricas:

Pergunto-me — disse Blanche — em que pensarias tu? Joan riu-se. Tinha um riso agradável, com um timbre suave e vibrante. — Há sempre muito em que pensar, não é verdade? — disse ela. Blanche sorriu: — Podemos sempre pensar nos nossos pecados! — Com certeza — Joan assentiu educadamente, embora sem dar sinal de achar piada. Blanche olhou-a intensamente. — Só que isso não te manteria ocupada por muito tempo! Franziu o sobrolho e prosseguiu de forma abrupta: — A seguir, tinhas de começar logo a pensar nas tuas boas acções. E em todas as bençãos da tua vida! Humm… não sei. Podia ser um bocado aborrecido. Pergunto-me — fez uma pausa — se, ao não pensarmos em nada mais do que em nós durante dias a fio, pergunto-me o que acabaríamos por descobrir acerca de nós próprios… Joan parecia céptica e ligeiramente divertida. — Será que descobriríamos algo que nos era desconhecido até então? Blanche disse lentamente: — Acho que sim… — Estremeceu repentinamente. — Não gostaria de experimentar”. 

Acabando por ficar retida no Iraque, a sós com os seus pensamentos, Joan vê-se levada a reinterpretar os eventos relacionais da sua vida, numa perspetiva nova e não isenta de desconforto. Acolhendo uma visão cada vez mais límpida (e mais tolerável) sobre os aspectos menos ajustados do seu funcionamento, percebe-se na iminência de uma dolorosa mas necessária mudança. Porém, desbloqueado o caminho de regresso a Londres, deixa – muito cómoda e defensivamente – extraviar a oportunidade para consolidá-la, preferindo esquecê-la e manter o antigo funcionamento. 

Baloiçando entre o céu e a terra, segui de queixo ao ar até Potsdamer Platz, pensando no sangue antigo que circulava Berlim, em tudo que a cidade não esquecia – que não queria esquecer a despeito da reverberação traumática das suas tragédias. Aos ouvidos, chegava-me a música de Bowie: “Had to get the train / From Potsdamer Platz / You never knew that / That I could do that / Just walking the dead”. Potsdamer Platz, a fénix alemã. Dividida em duas pelo Muro de Berlim; esvaziada até metade dos anos 70 pela demolição dos prédios que por então ainda subsistiam; transformada em “terra de ninguém”. Com a Queda, o espaço voltara a atrair investimentos, um novo distrito fora erguido, ganhando o modernismo da sua atual aparência. Mas tudo aquilo em que tão-somente conseguia pensar era o segundo – o breve, demoníaco, poderoso segundo – em que Joan, ausente na Primavera, decidira esquecer a sua melhor versão…  

Às dez para as duas, puxava um exemplar do ‘Der Spiegel’ e amesendava na esplanada do Kleine Orangerie para um frugal brunch de Tagessuppe e Himbeertorte. Havia cruzado Tiergarten no sentido inverso, rumo a Spandauer Damm. Na fachada barroca do Schloss Charlottenburg caía agora, mortiço, um sol de despedidas. Não queria ir. Não podia ficar. De bagagem a reboque, retracei a Schloßstraße com um desconforto de mágoa que, na altura, não estava seguro de saber significar totalmente, e ao cabo de quinze suados minutos, chegava à estação de Sophie-Charlotte-Platz, suspirante, com cansaços e palpitações de anjo caído – ciente das minhas asas, apertado por uma imensa fome de voar mais alto e mais longe. Segui a U2 até Alexanderplatz, e daqui, o S-Bhan que me levaria direto ao aeroporto.

Sem fôlego, deitámo-nos com o vento na colina, rimo-nos e beijámo-nos na bonita relva por sob o sol. Tu disseste: “Avançaremos através da glória e do êxtase; vento, sol e terra permanecerão, os pássaros ainda cantarão quando formos velhos, quando formos velhos...” “E quando morrermos, tudo de nós terminará; e a vida continuará a queimar, através de outros amantes, outros lábios”, disse eu, ”Coração do meu coração, o nosso paraíso é agora, está conquistado!” “Somos o melhor do mundo e a sua lição foi aprendida aqui. A vida é o nosso grito. Mantivemos a fé”. E dissemos: “Vamos descer com um passo firme, coroados de rosas no escuro”. Estávamos tão orgulhosos, e ríamos, por termos tantas coisas importantes e verdadeiras para dizer. Então de repente, começaste a chorar e foste embora”...

Há coisas que se perdem, meu amor. Mas há coisas que se ganham. Como este café neutral, algures por Bülowstraße, onde me sentei para me ouvir e me responder, sem medo e sem tabus, à semelhança de Joan Scudamore, nalguma obscura hospedagem iraquiana, igualmente confrontada com o lado mundano que tanto estranhara de si, por sob a redoma de uma Londres toxicamente cómoda e acrítica. Volta, pedia Potsdamer Platz: que a vida continue a queimar, através de outros amantes, os teus lábios tão sedentos; e então uma lágrima – extraordinariamente nítida – veio rolar-me rosto abaixo. A memória é algo que sabe do que gosta, e que do que ela gosta, ela gosta de repetir. Já o avião subira à noite, de regresso a Portugal, e eu, mero misericordioso mortal, de olhos fechados para refrear o pranto, recordando cada centímetro de movimento pela famosa infame Berlim, ia repetindo interiormente, aos soluços, aos borbotões de sangue, abrindo asas para a distância, e fervilhando de vida: “Por favor, não me deixes esquecer; por favor, não me deixes esquecer; por favor, não me deixes esquecer…”.















Carlos Marinho

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

BERLIM (2º. Capítulo: "Esta Cidade Não É Para Velhos - 2ª. Parte")

II – Esta Cidade Não É Para Velhos (2ª. parte)

How to talk with birds, trees, fish, shells, snakes, bulls and lions”. Semicerrei os olhos, e pestanejei uma segunda vez, certificando-me de que compreendia a inteireza do título. Pouco faltava para o meio-dia. Saído de Kurfürstenstraße para Gleisdreieck, em direcção a Warschauerstraße, seguira pela U2 até à estação de Hauptbahnhof, e agora, indiscretamente bocejando o sono que a noite de festa encurtara, aqui estava eu, no Hamburger Bahnhof, o Museu de Arte Contemporânea, entestando de ruga na testa insatisfeita um pequeno libreto branco-laranja onde se lia: “This exhibition emerged from a process of successive meetings and discussions among artists whose common thread is environmental thinking. Each of them deals with nature-culture entanglements in a unique way by drawing on their knowledge of a specific place…”. O Museum für Gegenwart situa-se num sumptuoso edifício neo-clássico, construído em 1847 como estação ferroviária – só em 1996, após extensas reformas a cargo de Josef Paul Kleihues, abriu ao público na versão que agora me propunha conhecer. Sabia que a instituição oferecia uma rotação de trabalhos artísticos em constante giro, e acalentava positivas expectativas quanto a entestar o meu primeiro Warhol. À minha volta, o projeto de Antje Majewski, Agnieszka Brzeżańska & Ewa Ciepielewska, Carolina Caycedo, Paweł Freisler, Olivier Guesselé-Garai, Tamás Kaszás, Otobong Nkanga, Paulo Nazareth, Issa Samb, Xu Tan e Hervé Yamguen continuava a dobrar-me o pescoço da tira de letras do libreto para as paredes, e das paredes para a tira de letras do libreto. Avancei então para um imenso auditório às escuras, onde uma instalação de multicanais de vídeo exibia a peça “The Demons Brain” por Agnieszka Polska. Não havia ali, porém, qualquer tensão erótica que me prendesse, e avancei sem refolhos para a exposição do pintor Otto Mueller, no andar superior, onde me demorei com maior interesse. Finda a ronda, fui sentar no restaurante do museu. Um delicado e extracalórico prato de Königsberger Klopse-roten beete-kapern-e-kartoffelpüree mais tarde, regressava ao átrio do Hamburger Bahnhof para comprar dois postais representando obras de Thomas Ruff (o “L’Emprereur #6”, e o “nudes ez 14”) e um outro, representando o “Concetto spaziale, Attesa” de Lucio Fontana. Cá fora, pesando sombriamente acima dos degraus da escadaria principal, o Volk Ding Zero (a famosa escultura de bronze de Georg Baselitz) tornava para mim, despedindo-se, a mesma pesada carranca aborrecida com que me recebera à entrada. Contornei o pátio frontal seguindo pelo passadiço de pedra britada e regressei de autocarro a Alexanderplatz, positivamente frustrado por não ter encontrado nenhum Warhol. Contudo, devia admiti-lo, as almôndegas estavam mesmo muito boas.

Seguindo a U5 para Hönow, saí em Frankfurter Tor em direção ao food market de Boxhagener Platz. O sol faiscava sobre a praça de Friedrichshain, e a goles de uma fresca garrafita de Glam Kola, por entre a animação de estudantes, famílias, turistas e punks que arredor distribuíam musicais sorrisos de vitalidade, avancei para a exploração dos cafés, boutiques, e lojas que se espalhavam por Grünberger, Krossener, Gärtner e Gabriel-Max-Straße. O coração – esteta e burguês – deixei-o, em pedaços, pela algibeira de uma jaqueta de nylon, estilo anos 80, numa sombria thrift shop de Grünberger, e a HHV Store, onde dei por mim a comprar uma cópia do «Swimming» e deixar para trás tantos outros vinis de Mac Miller. Tornando a Alexanderplatz, apanhei a U2 para Pankow e saí em Eberswalderstraße para o Mauerpark, a fronteira verde que divide as áreas atuais de Prenzlauerberg e Mitte (Wedding). A área hoje ocupada pelo parque fazia parte da antiga “faixa da morte”, a fita de terra que se estendia entre os muros que dividiam a Alemanha. Subsiste ainda um trecho de cerca de 300 metros do “muro interno”, usado por artistas como espaço de grafitti. Percorri o longo largo descampado com um sorriso de orelha a orelha, feliz na buliçosa envolvência das pessoas que ali vinham espreguiçar a sua própria felicidade, relaxando, fazendo piqueniques e churrascadas, andando de bicicleta, praticando desportos, brincando, tocando e cantando – este é o triunfo do amor, pensei de mim para mim, esta é a esperança da Humanidade: a autonomia do Ser como um exercício de comunhão respeitadora e dignificante do Outro. Tão generoso era o sol. Ocorreram-me então as palavras do Miguel Gonçalves: “As feridas curam-se ao ar livre, não mexendo muito no centro, cuidando da periferia: a pele vai cicatrizando dos lados para o meio”. Após a queda do muro, reconhecida a nossa própria Sombra, liquidadas as projeções, e assimilados os aspectos parciais do psiquismo, espera-se um alargamento do mundo interior. O Ego é ainda o centro da consciência, mas não mais visto como o núcleo de toda a personalidade: é o Self que passa a ocupar esta posição central, integrando o material consciente e o inconsciente, e trazendo unidade à psique, a totalização do ser, a sua esferificação (abrundung). Não mais fragmentado desde o interior, espartilhado nas contrições do seu pequeno Ego, o ser está agora capaz de abraçar valores mais vastos. A caminho do extremo leste da Oranienburgerstraße, sentia-me agora crescer, expandir, chegar mais longe na exploração das minhas geografias interiores. E toda uma juventude reverdecia por sob a minha pele, acelerando-me o passo esperançoso para os amanhãs que haveria de viver, cada vez mais plenos, cada vez mais brilhantes, cada vez mais felizes. 

Seguiu-se o Café Cinema, lendário ponto de encontro para realizadores, artistas e boémios, à entrada do pátio em Rosenthalerstraße, e o complexo de pátios grafitados de Haus Schwarzenburg, protegido património histórico desde 1977. Não deixava de me entreter a ideia de que David Bowie e Iggy Pop teriam, um dia, passeado por ali, e agarrei com mais força o vinil de Mac Miller, num abstracto reforço de pertença e identificação positiva com o universo criativo. A poucos metros de distância, encontrava-se o Monsterkabinett, um museu de estranhas figuras robotizadas de latão, obras de Hannes Heiner, junto ao qual me sentei a lanchar. De pronto regressei à agitação de Hackescher Markt, e daqui – após uma ronda pelo mercado de sábado – a Potsdamer Platz, já o céu anoitecia, antes de acorrer à Topographie des Terrors, em Stresenmannstraße, no intuito de recolher notas para um dos contos do meu «X». Depois de bem-sucedido na tarefa, regressei dolentemente a Potsdamer Platz. Era véspera de partida, e não queria deixar Berlim. O cansaço, porém, desencorajava novas saídas noturnas. Estava feliz. Muito. Cheguei ao hotel pronto a descansar, e cantarolava de olhar espipado para a janela: “Esta noche no voy a verte / Hoy me quedo pensando en ti / En las noches que pasamos / Que sentaitos en nuestro jardin / La luna como testigo / las flores como romances / El tiempo como enemigo / y mil palabras pa enamorarte”. Era então verdade: estava apaixonado por Berlim – apaixonado (hook, line and sinker) pela minha própria liberdade. “Não se pode ver sentido em tudo” ajuizava Wilde “Ou a vida corre o risco de ser percebida como uma enfiada de horrores”. Pela primeira vez em muito tempo – talvez mesmo muitos anos – senti dispensar o afã que outrora me afadigava na cerebralização de um significado para os meus passos. Sentindo-me, bastava-me. Era assim que me queria: equilibradamente sensitivo. Olhei uma última vez para o vinil do Mac Miller, e sorri. Não tardaria a descair nas almofadas, resvalando para a doce inconsciência do sono.