terça-feira, 31 de julho de 2018

ATENAS & DELFOS (Capítulo 4: "Uma Papoila Vermelha para Sócrates")

#4. ATENAS | Diário de Bordo (dia 2, parte III): À medida que ia riscando da checklist, orgulhosamente conquistados, os objetivos do meu ambicioso esforço cartográfico, fui-me permitindo renovar acalmias; o cansaço, porém, era fixo na sua extensão e pedia-me oásis de tranquilidade para mais de perto fruir da Beleza em torno. Descendo aos arrastões do neolítico promontório da Acrópole, enchi pulmões de revigorado oxigénio quando cruzei a Dionysiou Areopagitou para entrar no Museu da Acrópole. E tudo era pedra de pâte à choux, talhado de sonho, moído de luz, fazendo-me recordar as palavras do Professor Pearlman: “Muscles are firm, not a straight body in these statues. They're all curved, sometimes impossibly curved, and so nonchalant hence their ageless ambiguity as if they're daring you to desire them”. Já antes dissera que o verdadeiro artista é aquele para quem, na frase de Gautier, «le monde visible existe», ao lhe ser revelada, através da sua natureza, a essência das coisas, pro forma, o que só acontece, em função do Belo, sendo que a Beleza é a forma final de um objecto enquanto percebida sem representação de fim. Era a isto que o esteta Wilde se referia quando escreveu que era «preciso ser-se muito superficial para rejeitar julgar pelas aparências».

O chamado juízo ou gosto estético, parece ser, na verdade, uma grandeza de acuidade da sensibilidade – quanto mais sensível for uma alma, tanto maior a sua tendência a fremir de comoção pelas mais pequenas coisas: ora, o objectivo da Arte é precisamente a emoção pela emoção e porque é de índole pessoal, torna-se, acto contínuo, impossível dar uma definição objectiva de Beleza. Assim como a chamada «grandeza de um artista», que medem pelo grau de “quantidade de Beleza” que ele consegue fazer inspirar ao público através da sua criação, também a chamada «qualidade artística» de uma obra, não mais sendo do que o grau de “quantidade de Beleza” que as pessoas nela são capazes de descobrir é mito pois que é relativa: não é a obra que é bela, não o artista tem poder para a fazer bela – a Beleza somos nós. Apreciar, reconhecendo, descobrindo Beleza, é tê-la dentro de nós, porque Beleza é um conceito nosso, só dentro de nós é que é concebida. Encontrar é descobrir o que se já possui, sobre o qual, se têm já conhecimento. Porque o juízo estético de um indivíduo se encontra indubitavelmente sujeito às influências socioculturais da sua geração, torna-se impensável a ideia da criação de uma obra de arte, sem que esta seja determinada pelos padrões de beleza e critérios de julgamento do público, em voga nessa mesma geração, tendendo, todo aquele quem considera que a razão pela qual certas obras (concebidas no passado) que se lhe afigurem incapacitadas de lhe despertar um arrebatamento de deslumbre, de o impressionar minimamente, possam ter recebido uma sincera ovação na época em que foram criadas, se deve a um melhoramento que a Arte, tem vindo a experimentar ao longo dos tempos, erra: pois a Arte não melhora – evolui. Quando Stendhal afirma que a Beleza é «uma promessa de felicidade», não podia estar mais certo, porque Beleza é prazer: estimula a nossa sensação de grandeza interior – um ‘paroxismo espiritual’.

Disto ciente, diante da estatuária grega em parada museológica, como de um espelho, procurava reafirmar a pose, reeducado pela guia das suas voluptuosas silhuetas, erguendo altaneiro o sobrolho, todo arrogâncias de Narciso, avaliando-me, aprazado, em imaginação os lábios em febre, franzidos, num afã de lunático, à procura dos lábios que me tardavam, no encontro amoroso de erastas e eromenos, meus internos opostos. Pois a boca sabe do que gosta, e o que lhe agrada ela pede: 'faz isso outra vez'. Por dentro, a discreta gargalhada proibida da vaidade suspirando-me ao ouvido: tu és o favorito dele. Esta era a boca que lhe daria, mármore liso virginal: no seu beijo meu epitáfio suficiente. Ardia em mim, terrífica, a ausência desse beijo, amor por vir, como o silêncio dos poetas e do sepulcro, tão flamejante no desejo que instiga que esperava já por si, pronto na antecâmara de me chamar. A fantasiar, tudo antecipava. Antes das suas mãos avançarem sobre o meu corpo, já o antegosto delas me ia despindo. E desde dentro, em segredo, insuspeito turista displicentemente vagueando pela galeria de mais um museu, amava esta e aquela obra de arte, tocando este seio e aquele pénis, transgressivamente, trazendo-os do entalhe de frontões e do alto dos seus escaparates, numa invisível orgia de sentidos em alvoroço.

Subindo pela Makrigianni Vyrinos, girei depois para o Arco de Adriano, o Templo de Zeus Olímpico, e os jardins de Zappeio, onde pausei para um almoço de cordeiro, rosé e Baklava. Subi depois para o Monte de Filopappos, para deitar uma papoila vermelha à prisão de Sócrates. Quem te prendeu Mestre, não entendia de Beleza. Deitei nas flores, reflexivo, pensando se os adoradores do belo haveriam para sempre de ter, no mal, na insensibilidade, e na incompreensão, tão bárbaros carcereiros; este era o mundo tal como evoluía, nas parangonas de jornais anunciado, o gritante genocídio na Síria, a loucura dos diários massacres, a morte lenta da alteridade, o egoísmo e o medo dos humanos levando-nos em conjunto para espirais de luto e de agonia. De olhos postos no céu azul pensava em Marsilio Ficino exclamando: «Conhece-te a ti mesma, ó estirpe divina em vestes humanas». E ali, naquele sossegado recanto à sombra do famoso cárcere, querendo a tudo pôr em oração, tão longe de violência, e tão próximo dela pelo medo da solidão, o cansaço alargou-se em mim com os efeitos da conium maculatum, e recordei o que Platão descrevera no Fédon: «Ele, porém, continuava a andar quando declarou que sentia as pernas tornarem-se pesadas. Então, deitou-se de costas, como efetivamente lhe recomendara o homem. Ao mesmo tempo, este aplicava a mão aos pés e às pernas, examinando-o por intervalos. Em seguida, apertou-lhe fortemente o pé, perguntando-lhe se sentia; Sócrates respondeu que não. Depois, recomeçou na parte inferior das pernas e foi subindo para mostrar-nos que já começava a esfriar e a tornar-se hirto. E, tocando-o ainda, declarou-nos, que quando chegar ao coração, nesse momento Sócrates partirá». Voltei a mim num rebate de consciência. Recusava estatuificar nesta cega imposição cerebralizada de em tudo ver significado, sem de nada realmente fruir. Levantei, fui ajoelhar ao altar de Zeus Agoraios, e perder-me pelo Monte das Ninfas.

De mim para mim, recitava em louvor a Apolo, que para sempre reinassem em mim a Beleza e a Sabedoria: «Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está – (o teu templo) – eis o teu corpo. Dá-me a alma para te servir e a alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome. Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai. Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar. Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te a adorar-te. Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim» (Fernando Pessoa).

E as horas foram passando até regressar ao hotel. Um banho de imersão e alguns parágrafos de diário mais tarde, desafiei-me rumo a Gazi, ao encontro de um jantar de Souvlaki e vinho tinto. Na alma, maior era a tranquilidade, no andar a confiança. De repente, Atenas fez-se muito próxima e à noite, já no aconchego dos lençóis, o sono sobreveio por completo à consciência e resvalei para a nebulosidade dos sonhos…














Carlos Marinho

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