terça-feira, 31 de julho de 2018

ATENAS & DELFOS (Capítulo 5: "Un Rendez-Vous Manqué")

#5. DELFOS | Diário de Bordo (dia 3, parte I): Um impreciso número de horas de sono mais tarde, quinze ligeiros minutos da casa de Eurípides até à estação de Liossion, ao selvático ataque das estradas gregas, selvaticamente puxado sobre a fita lisa do asfalto às mãos de um tenso taxista de bigode à escovinha. Ésquilo, reputado por chamar aos atenienses «construtores de caminhos que domesticaram a terra selvagem», teria certamente muito a discorrer sobre as dinâmicas da condução automobilística que conheci. No terminal, bocejando à medida que tornavam páginas de jornal, cruzando e descruzando pernas no assento gélido dos bancos da paragem, os passageiros aguardavam o pullman que nos levaria a Delfos. Melancolicamente, cabeceava sobre o meu diário, relendo os versos de Arnaldo Varela de Sousa:

Não irás / a Delfos / para saber /que futuro / se escondeu / no teu passado / nem que verso / e reverso / (ainda / obscuro) / traçará / o teu arado. / A Delfos / só irás / pelo mais puro / desejo / de tocar / o que é / sagrado”.

Delfos do «Gnothi seauton», do «Conhece-te a ti mesmo», da minha Psicologia toda. Este era o caminho da minha mais profunda necessidade, da exploração da própria geografia interior, para, como diz Italo Calvino, “traçar o gráfico dos movimentos do estado de espírito, extrair de [mim] as fórmulas e os teoremas”. Delfos, o famoso santuário grego, hoje declarado Património Mundial pela Unesco, di-lo-á qualquer brochura turística, foi reconhecido como o maior centro religioso da Antiguidade, situado na ladeira sul do Monte Parnaso. Reza a lenda, terá sido fundado devido a uma fissura na terra de onde saiam vapores naturais que levariam ao transe e à previsão do futuro. De acordo com a mitologia, querendo medir com exatidão o centro do mundo, Zeus enviou duas águias, uma para Oeste e outra para Este e o local onde se encontraram foi em Delfos, o omphalos, umbigo do mundo. A região, porém, era dominada pela monstruosa Píton, uma cobra gigantesca que espantava qualquer possibilidade de aproximação. Coube então a Apolo oferecer-se para enfrentar a serpente, representante das forças primitivas e irracionais, derrotando-a num formidável combate. O deus vitorioso sepultou os restos do ofídio monstruoso exatamente debaixo do solo em que se ergueu o templo de Delfos, no golfo de Corinto, local em que as mensagens de Zeus, por intermédio de Apolo, chegariam aos interessados…

Depois de um tortuoso percurso de curvas e contracurvas, ao assalto das pornogeográficas montanhas da Sterea Ellada, rumo ao centro do universo, eu comigo mesmo, águia em exercício de voo, rumo talvez à águia outra que à hora certa do amor mais romântico, comigo se viesse cruzar no omphalos, viera a Delphos em peregrinação para um rendez-vous manqué. Recordei o que escrevera no «Y», e do muito que de mim pusera na figura da Contesse do «Entr’Actos»: “A maioria das mulheres, distraídas pela lassidão e pela conversa, embrutecidas de sensibilidade pelo vinho da indiferença, vive para o patético e para o heróico de uma vida só – ela vivia para o de várias. Assim era: um plural concentrado de múltiplas mulheres, um jogo de caleidoscópio, onde esparsas imagens lhe davam, a cada movimento de alma, um nome distinto. Mas a tendência orgânica para a simulação dramática deixava-a terrivelmente só. O grande homem é como a águia, quanto mais se eleva menos visível se torna e é castigado pela sua grandeza com a solidão da alma". Eu trazia todas estas altanias de Narciso, e aqui – sem premeditá-lo – viera purificar-me dos excessos de sentimento.

À medida que subia rumo ao Fórum, cantarolando por entre os ciprestes, olhava para o vasto horizonte, sentindo uma paz cada vez maior: eu, águia, descia à terra. “Compreende-se que os gregos hajam dedicado Delfos a Apolo, deus da Poesia e das Artes, pois melhor varanda sobre o mundo belo não poderia a divindade encontrar. Os olhos vagueiam na planície sagrada, no azul da lonjura marítima, lá para as bandas de Lepanto; sobem as encostas do Parnaso e detêm-se, ali e acolá, nas alpestres saliências rochosas, umas nuas e graves de meditação, outras vestidas de exuberante e múrmuro arvoredo. E quanto mais se contempla o monte célebre, mais estranho ele se torna, com suas escarpas, seus desvãos, suas cristas altíssimas, terra de formas singulares, brava terra de ninfas e de pastores, orquestra de brisas e de arroios, epopeia de cor, de luz e de ritmo. Mais para cima encarrapita-se, quase tão branca como os burgos das ilhas helénicas, a aldeia de Arachova, a serrana; mais para baixo, fica Levádia, onde nasceria o rio Letes, em cujas margens as sombras do Inferno iam beber o olvido. Quem, vindo a Delfos, não amaria trazer consigo um pouco da água do rio do esquecimento e bebê-la aqui, para esquecer o passado e o presente, para esquecer o Mundo e ficar enlevado para sempre, ante esta paisagem de sonho?” (Ferreira de Castro).

Esperei junto ao omphalos, mas o amor romântico não veio. Como não poderia nunca. Tamanho, porém, era o orgulho que a intrepidez me dava a experimentar, que a pegajosa assombração desse amor ausente começou por desprender-se dos meus cabelos. De repente, a sós comigo mesmo, chegava uma felicidade exuberante: a felicidade de bastar-me, na minha inteireza em construção, na minha solidão de mónada eterna. Por fim, inspirei uma golfada de ar fresco e, naquele retiro sagrado, cruzado de sombra pela figura esguia de ciprestes e colunas incompletas, calquei aos pés a serpente do medo de ser só. Eu tinha a Vida. E via agora – via realmente – o ser como a Suprema Realização Artística da Criação Excelsa, o mais elevado estágio da Arte Maior – a Beleza Divina encarnada numa Forma Mística, cujo Segredo «graecum est, non legitur» (é grego, não se lê), ou (como se diz de certo livro alemão) «es lässt sich nicht lesen» (não se deixa ler), a partir do qual toda a Vida era concebida. Este era eu a despir-me, na frase de Ficino, das vestes humanas que me cobriam o divino. “Os deuses não morreram: o que morreu foi a nossa visão deles. Não se foram: deixámos de os ver. Ou fechámos os olhos, ou entre eles e nós uma névoa qualquer se entremeteu. Subsistem, vivem como viveram, com a mesma divindade e a mesma calma” (Fernando Pessoa).

Foi aí que compreendi. Viera a Delfos para descobrir que a Beleza lá estaria sempre: não foi a perda da inocência que ma extraviou, não foi a displicência do tédio que a desanimou, não foi a maldade agressiva que a destruiu, não é a idade que a usurpa. E caminho fora, sonhando como os pastores da Arcádia nos seus cantares bucólicos, na forja – imparavelmente – os meus defeitos e as minhas qualidades, as minhas insuficiências e as minhas artes mágicas, encontrei por entre as milenares pedras deste mítico espaço, a Beleza da minha totalidade a sós. A três horas e meia de distância, Atenas reclamava a minha presença. Esta era a Grécia, reveladora e curandeira, colírio para olhos cansados, de à procura – sofregamente. Os deuses estão em capacitarmo-nos de que merecemos a Beleza que existe. Foi de novo rumo a Atenas, tão descontraidamente entregue ao orgulho das minhas conquistas, que vim a mim celebrando uma nova paz. “A Delfos / só irás / pelo mais puro / desejo / de tocar / o que é / sagrado”. Enfim, tudo se alinhava. “Todos estes mármores têm milénios, mas não é a evocação do passado, a perspetiva longínqua, a vida que as brancas pedras viram transitar, que dão esta sensação de magia. Não é o que morreu, é o que vive; não é o que foi, é o que está: são estes tempos em ruínas, sem a angústia fúnebre das ruínas; são estes templos que dir-se-á terem sido erguidos já em ruínas, para serem mais belos, para serem eternos”. Todo o amor estava em mim. Suficiente. Por fim, vivia, desfrutava: este era o presente, este era o sagrado.

Ao dar-se a transformação, eu que sou todo de reautorias narrativas, pude então rever e ressignificar o passado, mudá-lo dentro de mim. E como aprendi a amar uma mulher, amei também Atenas no refreio da ansiedade, na capacitação da minha auto-suficiência. Chegado à cidade, serenado pela paulatina concretização das minhas ambições de sonhador à conquista, fui falando com as ruas e as vielas, de Sintagma a Plaka, de Plaka a Monastiraki, ao meu ouvido, Nachomides, n’«A Carta Sagrada»: “Fala com ela para a pores à vontade. Profere palavras que exaltem o amor, o desejo e a paixão, e palavras de reverência a Deus. Nunca a forces. A disposição dela deve ser como a tua. Conquista-a com graciosidade e sedução. Sê paciente até despertares a paixão. Começa com amor. E quando a disposição dela estiver pronta, deixa que o desejo dela seja satisfeito primeiro. O importante é o prazer dela”.

Teu hóspede chegara, Atenas, senhora minha, não mais tropeçando na ansiedade de agradar por medo à solidão. «Ter-me-ás como me fizeste, Vida» pensava para comigo mesmo «Espirituoso do flirt, jogador de avanços e recuos, à espera de ver como gira a tua roleta, do que tens para me dar». E sob a lua grande de segunda cheia, voltei à praça de Monastiraki, onde outros tantos insights me esperariam, desta feita, à mesa de um prato de polvo grilhado e de um copo de Assyrtiko, esse que dizem ser dos mais inusuais vinhos brancos do Mediterrâneo, redolente a figos e madressilva…



























Carlos Marinho


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