sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

BERLIM (2º. Capítulo: "Esta Cidade Não É Para Velhos - 2ª. Parte")

II – Esta Cidade Não É Para Velhos (2ª. parte)

How to talk with birds, trees, fish, shells, snakes, bulls and lions”. Semicerrei os olhos, e pestanejei uma segunda vez, certificando-me de que compreendia a inteireza do título. Pouco faltava para o meio-dia. Saído de Kurfürstenstraße para Gleisdreieck, em direcção a Warschauerstraße, seguira pela U2 até à estação de Hauptbahnhof, e agora, indiscretamente bocejando o sono que a noite de festa encurtara, aqui estava eu, no Hamburger Bahnhof, o Museu de Arte Contemporânea, entestando de ruga na testa insatisfeita um pequeno libreto branco-laranja onde se lia: “This exhibition emerged from a process of successive meetings and discussions among artists whose common thread is environmental thinking. Each of them deals with nature-culture entanglements in a unique way by drawing on their knowledge of a specific place…”. O Museum für Gegenwart situa-se num sumptuoso edifício neo-clássico, construído em 1847 como estação ferroviária – só em 1996, após extensas reformas a cargo de Josef Paul Kleihues, abriu ao público na versão que agora me propunha conhecer. Sabia que a instituição oferecia uma rotação de trabalhos artísticos em constante giro, e acalentava positivas expectativas quanto a entestar o meu primeiro Warhol. À minha volta, o projeto de Antje Majewski, Agnieszka Brzeżańska & Ewa Ciepielewska, Carolina Caycedo, Paweł Freisler, Olivier Guesselé-Garai, Tamás Kaszás, Otobong Nkanga, Paulo Nazareth, Issa Samb, Xu Tan e Hervé Yamguen continuava a dobrar-me o pescoço da tira de letras do libreto para as paredes, e das paredes para a tira de letras do libreto. Avancei então para um imenso auditório às escuras, onde uma instalação de multicanais de vídeo exibia a peça “The Demons Brain” por Agnieszka Polska. Não havia ali, porém, qualquer tensão erótica que me prendesse, e avancei sem refolhos para a exposição do pintor Otto Mueller, no andar superior, onde me demorei com maior interesse. Finda a ronda, fui sentar no restaurante do museu. Um delicado e extracalórico prato de Königsberger Klopse-roten beete-kapern-e-kartoffelpüree mais tarde, regressava ao átrio do Hamburger Bahnhof para comprar dois postais representando obras de Thomas Ruff (o “L’Emprereur #6”, e o “nudes ez 14”) e um outro, representando o “Concetto spaziale, Attesa” de Lucio Fontana. Cá fora, pesando sombriamente acima dos degraus da escadaria principal, o Volk Ding Zero (a famosa escultura de bronze de Georg Baselitz) tornava para mim, despedindo-se, a mesma pesada carranca aborrecida com que me recebera à entrada. Contornei o pátio frontal seguindo pelo passadiço de pedra britada e regressei de autocarro a Alexanderplatz, positivamente frustrado por não ter encontrado nenhum Warhol. Contudo, devia admiti-lo, as almôndegas estavam mesmo muito boas.

Seguindo a U5 para Hönow, saí em Frankfurter Tor em direção ao food market de Boxhagener Platz. O sol faiscava sobre a praça de Friedrichshain, e a goles de uma fresca garrafita de Glam Kola, por entre a animação de estudantes, famílias, turistas e punks que arredor distribuíam musicais sorrisos de vitalidade, avancei para a exploração dos cafés, boutiques, e lojas que se espalhavam por Grünberger, Krossener, Gärtner e Gabriel-Max-Straße. O coração – esteta e burguês – deixei-o, em pedaços, pela algibeira de uma jaqueta de nylon, estilo anos 80, numa sombria thrift shop de Grünberger, e a HHV Store, onde dei por mim a comprar uma cópia do «Swimming» e deixar para trás tantos outros vinis de Mac Miller. Tornando a Alexanderplatz, apanhei a U2 para Pankow e saí em Eberswalderstraße para o Mauerpark, a fronteira verde que divide as áreas atuais de Prenzlauerberg e Mitte (Wedding). A área hoje ocupada pelo parque fazia parte da antiga “faixa da morte”, a fita de terra que se estendia entre os muros que dividiam a Alemanha. Subsiste ainda um trecho de cerca de 300 metros do “muro interno”, usado por artistas como espaço de grafitti. Percorri o longo largo descampado com um sorriso de orelha a orelha, feliz na buliçosa envolvência das pessoas que ali vinham espreguiçar a sua própria felicidade, relaxando, fazendo piqueniques e churrascadas, andando de bicicleta, praticando desportos, brincando, tocando e cantando – este é o triunfo do amor, pensei de mim para mim, esta é a esperança da Humanidade: a autonomia do Ser como um exercício de comunhão respeitadora e dignificante do Outro. Tão generoso era o sol. Ocorreram-me então as palavras do Miguel Gonçalves: “As feridas curam-se ao ar livre, não mexendo muito no centro, cuidando da periferia: a pele vai cicatrizando dos lados para o meio”. Após a queda do muro, reconhecida a nossa própria Sombra, liquidadas as projeções, e assimilados os aspectos parciais do psiquismo, espera-se um alargamento do mundo interior. O Ego é ainda o centro da consciência, mas não mais visto como o núcleo de toda a personalidade: é o Self que passa a ocupar esta posição central, integrando o material consciente e o inconsciente, e trazendo unidade à psique, a totalização do ser, a sua esferificação (abrundung). Não mais fragmentado desde o interior, espartilhado nas contrições do seu pequeno Ego, o ser está agora capaz de abraçar valores mais vastos. A caminho do extremo leste da Oranienburgerstraße, sentia-me agora crescer, expandir, chegar mais longe na exploração das minhas geografias interiores. E toda uma juventude reverdecia por sob a minha pele, acelerando-me o passo esperançoso para os amanhãs que haveria de viver, cada vez mais plenos, cada vez mais brilhantes, cada vez mais felizes. 

Seguiu-se o Café Cinema, lendário ponto de encontro para realizadores, artistas e boémios, à entrada do pátio em Rosenthalerstraße, e o complexo de pátios grafitados de Haus Schwarzenburg, protegido património histórico desde 1977. Não deixava de me entreter a ideia de que David Bowie e Iggy Pop teriam, um dia, passeado por ali, e agarrei com mais força o vinil de Mac Miller, num abstracto reforço de pertença e identificação positiva com o universo criativo. A poucos metros de distância, encontrava-se o Monsterkabinett, um museu de estranhas figuras robotizadas de latão, obras de Hannes Heiner, junto ao qual me sentei a lanchar. De pronto regressei à agitação de Hackescher Markt, e daqui – após uma ronda pelo mercado de sábado – a Potsdamer Platz, já o céu anoitecia, antes de acorrer à Topographie des Terrors, em Stresenmannstraße, no intuito de recolher notas para um dos contos do meu «X». Depois de bem-sucedido na tarefa, regressei dolentemente a Potsdamer Platz. Era véspera de partida, e não queria deixar Berlim. O cansaço, porém, desencorajava novas saídas noturnas. Estava feliz. Muito. Cheguei ao hotel pronto a descansar, e cantarolava de olhar espipado para a janela: “Esta noche no voy a verte / Hoy me quedo pensando en ti / En las noches que pasamos / Que sentaitos en nuestro jardin / La luna como testigo / las flores como romances / El tiempo como enemigo / y mil palabras pa enamorarte”. Era então verdade: estava apaixonado por Berlim – apaixonado (hook, line and sinker) pela minha própria liberdade. “Não se pode ver sentido em tudo” ajuizava Wilde “Ou a vida corre o risco de ser percebida como uma enfiada de horrores”. Pela primeira vez em muito tempo – talvez mesmo muitos anos – senti dispensar o afã que outrora me afadigava na cerebralização de um significado para os meus passos. Sentindo-me, bastava-me. Era assim que me queria: equilibradamente sensitivo. Olhei uma última vez para o vinil do Mac Miller, e sorri. Não tardaria a descair nas almofadas, resvalando para a doce inconsciência do sono.





















































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