Apaixonar-me. E não poder consumar o desejo,
senão a expensas de perder a minha preciosa condição de imortal… Por entre as copas de Tiergarten, a estátua da Vitória de Friendrich Drake resplendia ao sol matutino,
arrebitando Siegessüle numa tocha de fogo dourado. Aos/às cinéfilos/as não
escapará saber que a «Goldelse» é uma das perspetivas do anjo Damiel sobre
Berlim, no lendário filme de Wim Wenders, «As Asas do Desejo». Enquanto
caminhava paralelo à Strasse des 17. Juni, calcando as folhas secas das bordas
de Grosser Weg, fotografando Narcisos que se procuravam em lagos que
eram céus, pensava no extraordinário sacrifício de Damiel, no tanto de emoções que
Marion lhe haveria inspirado, e no anjo caído que o ajudara a transitar entre dois mundos. Pausei entestando o solitário horizonte do imenso parque. O eco mental repetia: Dois mundos. Dois mundos. Dois mundos. Haverão sempre
dois mundos, ajuizei para mim mesmo; tal como será sempre necessário um anjo caído, em nós, que nos
ensine a equilibrá-los. Em Berlim deixava os cumes da fantasia; fizera-me a
carne que ainda não era - ou não era mais totalmente. Como um fragmento de ecdise, a minha resistência ruía,
e o susto com que agora trocava a imortalidade pelo que houvesse de mais real arrepiou-me
de Vida. A súbitas, um fio escarlate serpenteou por entre o novelo das minhas cogitações
– Joan Scudamore, e o terror do esquecimento.
Joan Scudamore é
a heroína de «Absent in the Spring», autorado por Mary Westmacott, e descrita por críticos
como “a seemingly invincibly smug and
complacent provincial English matron in her late forties with a lawyer husband
and three adult children (“Oh, no, my dear.
I'm a very busy woman in my small way.
I'm the Secretary of the Country Gardens Association. And I'm on the
Committee of our local Hospital. And
there's the Institute, and the Guides. And
I take quite an active part in politics”). Joan regressa a Londres, por
terra, vinda de visitar a filha a Bagdade. O romance
principia com o encontro entre a heroína e uma velha amiga da escola, a boémia e
mundana Blanche Haggard. Num ato de
quase previdência, Blanche especula sobre o que Joan faria se ficasse presa no
Iraque, devido às péssimas condições climatéricas:
“Pergunto-me — disse Blanche — em
que pensarias tu? Joan riu-se. Tinha um riso agradável, com um timbre suave e
vibrante. — Há sempre muito em que pensar, não é verdade? — disse ela. Blanche
sorriu: — Podemos sempre pensar nos nossos pecados! — Com certeza — Joan
assentiu educadamente, embora sem dar sinal de achar piada. Blanche olhou-a
intensamente. — Só que isso não te manteria ocupada por muito tempo! Franziu o
sobrolho e prosseguiu de forma abrupta: — A seguir, tinhas de começar logo a
pensar nas tuas boas acções. E em todas as bençãos da tua vida! Humm… não sei.
Podia ser um bocado aborrecido. Pergunto-me — fez uma pausa — se, ao não
pensarmos em nada mais do que em nós durante dias a fio, pergunto-me o que
acabaríamos por descobrir acerca de nós próprios… Joan parecia céptica e
ligeiramente divertida. — Será que descobriríamos algo que nos era desconhecido
até então? Blanche disse lentamente: — Acho que sim… — Estremeceu
repentinamente. — Não gostaria de experimentar”.
Acabando por ficar retida
no Iraque, a sós com os seus pensamentos, Joan vê-se levada a reinterpretar os
eventos relacionais da sua vida, numa perspetiva nova e não isenta de
desconforto. Acolhendo uma visão cada vez mais límpida (e mais tolerável) sobre os aspectos menos ajustados
do seu funcionamento, percebe-se na iminência de uma dolorosa mas necessária mudança. Porém,
desbloqueado o caminho de regresso a Londres, deixa – muito cómoda e
defensivamente – extraviar a oportunidade para consolidá-la, preferindo esquecê-la
e manter o antigo funcionamento.
Baloiçando entre o céu e a terra, segui de queixo ao ar até Potsdamer
Platz, pensando no sangue antigo que circulava Berlim, em tudo que a cidade
não esquecia – que não queria esquecer a despeito da reverberação traumática das suas
tragédias. Aos ouvidos, chegava-me a música de Bowie: “Had to get the train / From Potsdamer Platz
/ You never knew that / That I could do that / Just walking the dead”. Potsdamer Platz, a fénix alemã. Dividida em duas pelo
Muro de Berlim; esvaziada até metade dos anos 70 pela demolição dos prédios que
por então ainda subsistiam; transformada em “terra de ninguém”. Com a Queda, o
espaço voltara a atrair investimentos, um novo distrito fora erguido, ganhando o
modernismo da sua atual aparência. Mas tudo aquilo em que tão-somente conseguia pensar era o segundo – o breve, demoníaco, poderoso segundo – em que Joan, ausente
na Primavera, decidira esquecer a sua melhor versão…
Às dez para as duas, puxava um exemplar do ‘Der
Spiegel’ e amesendava na esplanada do Kleine Orangerie para um frugal brunch de Tagessuppe e Himbeertorte. Havia
cruzado Tiergarten no sentido inverso, rumo a Spandauer Damm. Na fachada barroca
do Schloss Charlottenburg caía agora, mortiço, um sol de despedidas. Não queria ir. Não
podia ficar. De bagagem a reboque, retracei a Schloßstraße com um desconforto de mágoa que, na altura, não estava seguro
de saber significar totalmente, e ao cabo de quinze suados minutos, chegava à
estação de Sophie-Charlotte-Platz, suspirante, com cansaços e palpitações de anjo
caído – ciente das minhas asas, apertado por uma imensa fome de voar mais alto e mais longe. Segui a
U2 até Alexanderplatz, e daqui, o S-Bhan que me levaria direto ao aeroporto.
“Sem fôlego, deitámo-nos com o vento na colina, rimo-nos e beijámo-nos
na bonita relva por sob o sol. Tu disseste: “Avançaremos através da glória e do
êxtase; vento, sol e terra permanecerão, os pássaros ainda cantarão quando formos
velhos, quando formos velhos...” “E quando morrermos, tudo de nós terminará; e
a vida continuará a queimar, através de outros amantes, outros lábios”, disse
eu, ”Coração do meu coração, o nosso paraíso é agora, está conquistado!” “Somos
o melhor do mundo e a sua lição foi aprendida aqui. A vida é o nosso grito. Mantivemos
a fé”. E dissemos: “Vamos descer com um passo firme, coroados de rosas no
escuro”. Estávamos tão orgulhosos, e ríamos, por termos tantas coisas
importantes e verdadeiras para dizer. Então de repente, começaste a chorar e foste
embora”...
Há coisas que se perdem, meu amor. Mas há coisas que se ganham. Como este café neutral, algures por Bülowstraße, onde me
sentei para me ouvir e me responder, sem medo e sem tabus, à semelhança de Joan
Scudamore, nalguma obscura hospedagem iraquiana, igualmente confrontada com o lado mundano
que tanto estranhara de si, por sob a redoma de uma Londres toxicamente cómoda
e acrítica. Volta, pedia Potsdamer Platz: que a vida continue a queimar, através
de outros amantes, os teus lábios tão sedentos; e então uma lágrima – extraordinariamente nítida
– veio rolar-me rosto abaixo. A memória é algo que sabe do que gosta, e
que do que ela gosta, ela gosta de repetir. Já o avião subira à noite, de regresso a Portugal,
e eu, mero misericordioso mortal, de olhos fechados para refrear o pranto, recordando cada centímetro de
movimento pela famosa infame Berlim, ia repetindo interiormente, aos soluços, aos borbotões de
sangue, abrindo asas para a distância, e fervilhando de vida: “Por favor, não me deixes esquecer; por
favor, não me deixes esquecer; por favor, não me deixes esquecer…”.
Carlos Marinho
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