I - O Ano do Porco
I – Em 2014, depois de um muito sofrido 7 a 1 contra o Brasil, a Alemanha
passou às finais da Copa do Mundo com a Argentina. Repetindo o feito das
edições de 1954, de 1974 e de 1990, acabaria por sagrar-se campeã pela quarta
vez após a reunificação do país; e numa conferência organizada pela FIFA, 45
federações afiliadas à CONCACAF e à CONMEBOL avaliaram o trabalho da Copa como
“o melhor futebol já visto na história
dos Mundiais”. Há, entre várias outras, distintas anedotas da vida
ordinária que os registos mnésicos mantêm incólumes por entre os altibaixos da
nossa muito humana progressão sinusoidal; basta que o amor ou a solidão os marque
com a sua discreta selvática mordedura, como é deles mais nitidamente nos
definir a totalidade. Tenho percebido que por bizarro condão são sempre as
banalidades que mais persistentemente se enraízam na memória, e as que da
lágrima ao grito, mais flagrantemente nos cativam e comovem a sensibilidade.
Era Verão, embora o ano jogasse na equipa dos Verões frios; de junho para
julho, as temperaturas médias haviam caído abaixo do normal, mas no calendário
chinês ardia o tumultuoso Ano do Cavalo, e a vida dilatava-se-me amorosamente
ao lado de Björn e Nina, no rúbido desejo de viver – viver muito –, de abraçar o futuro
e ansiar por ele. As memórias não são lineares, claro; há momentos –
delicadezas – que se sobrepõem na mente, tornando-se difícil precisar as
coordenadas da vida. Certos dias, agarramos o presente, vivemo-lo com ousadia;
outros, deixamos o tempo passar, alheios a nós próprios: oportunidades adiadas,
recusadas, ignoradas, oportunidades que voltam ou talvez não; momentos que são
dobragens improváveis de outros dias, dias que são apenas lado B. Mas diz-se que a
memória é algo que sabe do que gosta, e que do que ela gosta, ela gosta
de repetir. A esse
Verão lembro-o inteiro, verso e reverso, o mais quente de todos os incêndios na Invicta: engrossando
o frenesim de adeptos pela Praça dos Aliados, olhos postos na Copa do Mundo, a
torcer pela vitória de Schweinsteiger, braço cruzando braço, entredevorando-nos
de amor e de cerveja e de loucura
também. Avançava a sua grandiosa Alemanha contra o Brasil, e eu aplaudia, parvo
de pólo a pólo, porque nesse estupor de enamoramento, éramos mais fortes do que
milhões de cabeças no grito da nossa uníssona celebração. Pedi-lhe que vencesse a Copa por mim. No passado dia 13 de
fevereiro, pelas 21.30, aterrei em Schönefeld, sombreado pelo sorriso ‘si beau, si triste’ da sua despedida,
recordando «A Colina» de Robert Brooke: “Estávamos
tão orgulhosos, e ríamos, por termos tantas coisas importantes e verdadeiras
para dizer. Então de repente, começaste a chorar e foste embora”. Não chegámos sequer à grande final. Há coisas
que se ganham, e há coisas que se perdem. Costuma dizer-se que não existem
insubstituíveis; mas ninguém age como se isso fosse verdade. No fundo, é sempre
esse o motivo pelo qual reagimos à sua ausência. Já tanto tempo passado. Tantos
amores esquecidos, perdoados, doendo ainda. A Alemanha ganhou 1-0, golo de
Mario Götze. Vejam-se lá as coisas de que um gajo se lembra...
II – Foi Björn, o hedonista de Hessen, o “green
god” da marcha cantada e indómita pela vida, o defensor da liberação sexual
sem pruridos, quem primeiramente me falou da famosa e infame Berlim;
referia-se-lhe, absorto em curiosa intensidade, nos termos de um «novo mundo»,
de «um epicentro de liberdade». Não tardei a perceber que se do amor o vinham matando devagar as
tranquilidades da sua calma ordenação, da capital germânica enfeitiçavam-no
mais garridamente as ousadas geometrias de um liberalismo impudentemente afeto
ao culto dos sentidos. Durante longos e sérios anos a fio, endemonizando-a por
rivalizar com os atractivos da minha entrega, selei a cidade como lugar maldito,
subi muros à sua pérfida lascívia, estranhei-me de todos os atractivos que lhe apontassem,
escrevi sonetos de mal-dizer que eram credos de exorcismo. E como toca a quem se
não permite a totalidade, extraviei-me de coordenadas existenciais, perdi-me o
sentido dos passos. Vinha procurando o X mais correto, e tropeçava ainda nas
malhas do meu próprio engano. “Quando
Deus percorre o jardim na brisa da tarde, o homem e a mulher escondem-se até
que ouvem a pergunta primordial “onde estás” (Génesis 3,8), que encaminha
para a pergunta 'por que fizeste isso?'. Nesta pequena passagem das origens,
encontramos as questões fundamentais do agir humano: ‘quem sou/onde estou?’ e
‘por que ajo assim?’. Só muito recentemente, na sequência do estudo junguiano-feminista em que baseei o projeto «Sonhar com Ladrões», e a propósito da escrita – ainda em
exercício – do meu segundo livro de contos («X»), senti-me confrontado com
a consciência de que todos os muros são adversos à sanidade. Dissera-mo Wilde –
anos atrás – que: “O culto dos sentidos
tem sido frequentemente, e muito justamente, condenado, dado que os homens
sentem um natural instinto de terror em relação às paixões e às sensações que
parecem ser mais fortes do que eles, e de que têm a consciência de partilhar
com formas de vida inferiores. Mas era evidente […] que a verdadeira natureza
dos sentidos nunca fora compreendida, e que permaneceram indomáveis e
animalescos unicamente porque o mundo procurava submetê-los pela abstinência ou
matá-los pela flagelação, em vez de procurar transformá-los em elementos de uma
nova espiritualidade, em que um elevado instinto de beleza seria a
característica dominante”. Deveria ter sabido então: não há espírito sem
matéria, nem matéria sem espírito. Sincronicamente, ao Ano do Cão sobrepunha-se
agora, completando um ciclo, o Ano do Porco de Terra, último animal do
bestiário chinês, um auspicioso encorajamento; enquanto o Porco demonstra
inteligência e poder de observação, a Terra é um elemento de intuição e racionalidade;
os dois unem, positivamente, a objetividade e a espiritualidade, o que em mim tendia a cindir e estranhar. Internamente,
um movimento compensatório procurava equilibrar a unilateralidade da exclusão atemorizada,
tornando-me agora a atenção para a saudável normalização do erotismo e dos
impulsos sexuais. O extraordinário trabalho de Phyllis e Eberhard Kronhausen,
dois psicólogos americanos, ativos nas décadas de 60 e 70, foi de vital
importância na organização dos meus objetivos, e na estruturação dos meus
próprios valores como profissional e ser humano. Trabalhara-o já em «Sonhar com
Ladrões», ainda que focado tão-somente no universo feminino: “Quando se trata de sexo, a maior parte de
nós sofre de uma dose excessiva de superego. Qualquer libertação da tirania da
culpabilidade e vergonha é consequentemente um bem para o indivíduo. (…) Em
resumo, a liberdade emocional está sempre do lado da sanidade mental. Quanto
mais livre é um indivíduo, maior a sua sanidade. Quando se tem preconceitos e
se liga a tabus e deles se depende, caminha-se para uma limitação da
personalidade e do mundo exterior. Quanto menos inibições se tiver, mesmo nos
aspectos mais desagradáveis, significa um progresso num sentido mais seguro e
saudável. (…) Neste sentido, acreditamos numa absoluta e total liberdade sexual
sem interferência de qualquer fonte e sem hipocrisia”. Como Laura nas
fantasias da ficção, era necessário que eu próprio explorasse cenários
sensitivamente carregados, de forma a quebrar a Cortina de Ferro que me
separava dessa Berlim de ignomínias. Depressa descobri que Berlim é uma cidade
que se constrói na proporção dos seus visitantes, podendo ser implacável para
quem não conheça os seus limites. Mantive no Amor o meu fio de Ariadne. Jung
ressurgia – inevitável, grandioso –, no seu iluminado princípio de integração. Findas
contas, Berlim era muito como eu: entendia de divisões. O choque do separatismo
fazia parte do seu sangue. Mas “[q]uem não admita plenamente, uma vez por outra,… o horror da vida,
nunca tomará posse da abundância e da força inexprimíveis da nossa existência:
não poderá senão mover-se na sua orla, e um dia, no momento da verdade, nunca
terá estado vivo nem morto” (Rainer Maria Rilke). Como o muro que outrora horrorizara o mundo se veio a transformar numa
imensa galeria de arte a céu aberto, como o cinzento da sua destruição se veio
eriçar em verdes de esperança, como o preconceito racial se permitiu evoluir
para a aceitação multicultural, também eu me preparava agora para desembaraçar
medos e enfrentar a tensão erótica dos seus domínios. “Eros” aprendia com Nicola
Abel-Hirsch “é a ideia de uma força que
“liga” os elementos da existência humana – fisicamente através do sexo,
afectivamente através do amor e mentalmente através da imaginação (…) É Eros
(…) que liga e reúne as coisas uma às outras – e que as liga, poderíamos nós
acrescentar, de tal maneira que daí decorre qualquer coisa de vivo ou qualquer
coisa de novo”. Sabia não haver outra forma de me sublevar ao terror do seu
construído endemonismo, senão mergulhar nele. Longa, marchada e gélida foi a
caminhada até Ostkreuz, onde apanhei o S-Bahn para
Warschauerstraße, e daqui, o U-Bahn para Kurfürstenstraße. O Novum Aldea Zentrum
– diligentemente reservado pela sempre fiel Alethea – ficava a cinco minutos a
pé pela Potsdamerstraße, no número 19 da Bülowstraße. O quarto, sóbrio e
espaçoso, abria por amplas janelas de ressalto para um pátio tranquilo, então
batido de lua, oferecendo todas as comodidades necessárias ao repouso do meu inquieto passo de trotamundos. Desfeita
a mala, estirei-me com dolências felinas pela macieza do colchão e foi aí que senti
o peso do corpo entorpecer-me. Sonhei, antecipando os dias seguintes, que como a
Hejira de Anaïs Nin, ia rolando e esbarrigando a minha totalidade de Porco
telúrico pelos arruamentos desconhecidos da cidade, fazendo chegar o meu mais
alarve apetite suíno a cada um dos mil recessos da noite berlinense, com ânsias de tudo comer,
com ânsias de tudo sentir.
III – O
dia de São Valentim amanheceu ensolarado, mas chegando navalhadas de frio ao corpo.
Batiam as onze em Alexanderplatz quando, tolhido no aconchego de um blusão Kispo,
adentrava o Fernsehturm – ou Telespargel (palito), conforme o apelidam os
nativos –, no intuito de reservar uma ‘table
for one’ no célebre restaurante giratório ‘Sphere’. Cumprida a tarefa, e
tendo ainda uma hora de espera pela frente, regressei à “Alex” para explorar os
recessos interiores de Marienkirche, a tranquila Igreja de Santa Maria que, na firme
estrutura em tijolo vermelho, enegrece sozinha – oásis medieval – à sombra da hodierna
Torre Televisiva. Passo a passo, avancei pelo hall gótico, embevecido pelas extraordinárias obras datadas de
meados do século XV até inícios do século XVIII, como o altar barroco desenhado
por Andreas Krüger, a pia baptismal, o púlpito esculpido por Andreas Schlüter,
e o Totentanz (“Dança da Morte”), um fresco
gótico de cerca de 22 metros de cumprimento, que me manteve cativo, de
olhar espipado, durante vários minutos. De volta ao exterior, entestando a
altania da Rotes Rathaus, saltei alegremente para a cuba seca de Neptunbrunnen,
a magnífica fonte neo-barroca trazida do antigo Stadtschloss (Castelo de Berlim
– inaceitável recordação do imperialismo), em 1969, para me ajeitar de objectiva
em punho, por entre as representações do Reno, do Vístula, do Oder e do Elbe – os
quatro maiores rios da Alemanha – e todo um polvilhado de delicados detalhes
naturalistas, como peixes de bronze, lagostins, e redes de pesca. A vastidão da
praça, desde a Fonte de Neptuno até à curva oeste do rio Spree, recebeu o nome
de Marx-Engels-Forum, a despeito de não haver aqui fórum algum que lhe
justifique a designação; com efeito, desprovidas de envolvência, as únicas
obras que aqui marcam presença são as estátuas de Karl Marx e Friedrich Engels,
nobres e rígidas, ligeiramente deslocadas de destaque, emudecidas por sob as
folhas secas que por então se despegavam das árvores. Seguindo pela
Karl-Liebknechtstraße, fui desembocar
aos paços de Museumsinsel, ou Ilha dos Museus, onde me entretive a fotografar o
Altes, a brincar por entre as esculturas do Neues, e amodorrar sobre o vão da
Schleusenbrücke, para ouvir uma versão do «My Way» a saxofone. Tive ainda tempo de
invadir uma das cabines Photoautomat, defronte à Berliner Dom, antes de acorrer
– já atrasado – para o Fernsehturm, e em quarenta segundos escalar, via elevador,
os 368 metros da portentosa Torre Televisiva. Foi justamente a 1207 pés de
altitude, confortavelmente instalado numa mesa do segundo círculo rotativo do ‘Sphere’,
que por pouco mais de quarenta euros, entestando 40 quilómetros de céu limpo e
luzidio, pus as já gastas expectativas sociais de parte, e celebrei a sós o meu
São Valentim com um delicioso Currywurst, uma salada de batata fria, um tiramisú
de frutos do bosque, e uma vermelhíssima Waldmeistersirup em taça majestática. A digestão seguiu-se
em trânsito pela Unter den Linden até Brandenburger Tor, símbolo da divisão da
cidade, na divisa entre as extintas Berlim Oriental e Berlim Ocidental, e
símbolo da Berlim reunificada após a queda do Muro. De caminho, passei
reverentemente pelo Neue Wache, a casa que serve o “Memorial Central da
República Federal da Alemanha para as Vítimas da Guerra e da Ditadura”, pela
grandiosidade da Humboldt Universität, e pela monumental estátua equestre de
Frederico, o Grande – também chamado pelos berlinenses de “Velho Fritz” – no
final do Lindenforum. Em Brandenburger Tor, uma pequena feira animada a música
ao vivo, enchia Pariser Platz de cor e ruído, onde me demorei de máquina fotográfica e sorriso em riste. A
antítese mais contrastante deste vívido cenário aguardava-me a pouca distância, ao
correr da Ebertstraße, no Memorial aos Judeus Assassinados da Europa, o
Memorial do Holocausto. Numa área de 19 000 metros quadrados, a enigmática
construção de Peter Eisenman compõe-se de 2711 blocos de cimento, de 2.38m de
comprimento por 0.95m de largura e altura variada desde 0.2m até 4.8m. Lê-se no
projeto de Eisenman que os blocos pretendem produzir um clima de confusão e
intranquilidade, na representação de um sistema supostamente ordenado, mas
extraviado da razão humana; o aspecto mais perturbador desta construção estará,
talvez, na forma como ao atravessá-lo de um bloco ao outro, o seu labirinto
nos remete à triste reflexão de tudo quanto é efémero, e de tudo quanto é breve
na sua inevitável efemeridade – não muito longe, uma pessoa passava para logo
desaparecer, apenas um fogo-fátuo na escuridão. Decidido a confrontar e admitir
a evidência do mal na vida (eu que tão sensível me tenho à horrorosa gratuitidade
da violência humana e, particularmente, ao genocídio da Segunda Guerra Mundial),
recitei Rilke no alinhamento de um mantra de aceitação. Demorei-me o suficiente para
equilibrar balanças interiores. Seguindo caminho, atento a unilateralidades,
um sorriso burguês puxou-me o fio de Ariadne para o LP12 Mall of Berlin, na parte nordeste do octógono em Leipziger Platz, antes de apanhar o U-Bahn de Potsdamer Platz para Kochstraße, em direcção ao Checkpoint Charlie, de que
John le Carré me havia falado nas suas histórias. Este posto militar entre a Alemanha Ocidental
e Oriental durante a Guerra Fria fora projectado como o único ponto de passagem
de estrangeiros e membros das Forças Aliadas na Alemanha Ocidental para a Oriental,
entre 1961 e 1990, tornando-se um símbolo da separação entre o leste e oeste, e
– para alguns alemães orientais – uma estrada para a liberdade. Profundamente inspirado pela
carga simbólica de todos estes sites,
puxei-me matéria e espírito para uma conversa frontalmente erótica: “You and me, we're like America and Russia / We're
always keeping score / We're always balancing the power / And that can get to
be a cold cold war / We're going to have to hold ourselves a peace talk / In
some neutral café / You lay down your sneaking round the town, honey / And I'll
lay down the highway”. Trinta
e três anos, e mais afeito me faço aos maquinismos deste esquivo somatório. Pouco
antes de Berlim-erótica, dera por mim ritualizado na condição do dia-a-dia, melhor
sabendo então da mecânica que me estrutura a pressa do motor – e, mais atento
do que outrora, dando-lhe corda mais um dia, para saber o que haveria de ser.
Trinta e três, rezava com os meus botões, eram já ciência, eram mais apuro no
palato, no mexer do caldeirão; se havia que travar – então, parava –, se havia
que avançar-se – então, eu ia. Códigos de ser que se decoram; e assim
amadurecia – e assim amadureço – no calor das muitas mãos que benquerendo vão
vincando as minhas dobras de pessoa. Faz-se um pouco de espanto, como de susto,
de amargura e gratidão, depois amanhã, depois nada, e este tempo que não pára,
num papo de fole a desmaiar. Mais fundo, espiga dentro um dó de bipétala
inquietação: morrer de me antecipar à esquina, ou ser mais lesto do que o medo.
Bem me quero, mal me quero. Regressando ao hotel, fiquei novamente a sós com a
noite. Trinta e três anos, em Berlim. Era dar-lhes corda. De repente, a ruga de
um receio na esquina onde não estava: chegara primeiro do que eu, ou errara o
somatório (e esse papo da ciência, ligeirinho a perder ar?). Da razão ao
absurdo, não havia mais que ser-se inteiro; depois do espanto e do mais nada, havia
um punho que se achatava e com ele a indecisão. Puxado por Eros, desatava-se-me o fio
de Ariadne para a escuridão das navalhadas frias. Na noite de um milhão de olhos, Bülowstraße
abria caminho para os meus apetites de Hejira, chamando-me pelo nome, chamando-me
inteiro. Indo, indo - eu ia. Indo, indo - eu fui...
[Continua]
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