II – Esta
Cidade Não É Para Velhos (1ª. parte)
Girei
a esquina para Maaßenstraße com a displicência da saciedade, sorrindo às
lembranças da noite passada no Tom’s, as mãos em cruz sobre o peito de
agarrá-las à aba do saco-tiracolo, percorrendo o olhar pelas inscrições a grafitti que ladeavam a linha do U-Bahn
de Nollendorfplatz, assobiando baixinho – “I'd
like to hate myself in the morning / And raise a little hell tonight / I've got
the urge to carouse / And maybe raise a few brows”. Diz-se de uma “residência
espanhola” (aprendera-o nas aventuras de Xavier, com o célebre – e inesquecível
– ‘L'auberge espagnole’ de Cédric
Klapisch) que é um sítio onde apenas se encontra o que lá se põe. Assim
descreveria Berlim: um místico par de coordenadas espácio-temporais, trans-subjetivas,
cujo alargamento se produz na proporção de quanto mundo interno haja a
declarar-se no/a seu/sua visitante. Todas as capitais que haviam precedido
Berlim detinham um proprium eminente,
reduzindo-me à desconfortavelmente passiva posição de hóspede hesitante; desta
feita, fora Berlim a adaptar-se ao esquema das minhas mais espontâneas necessidades.
Dostoievski escrevera algo sobre como a liberdade não poderia nunca identificar-se
com qualquer tipo de moralismo sem se desvirtuar. Berlim era toda esta
desimplicação moralista, este crawl pelas
águas da libertação, este amansar de um supereu cruel e persecutório, um vir a
mim em paz na minha visceralidade.
Decidido a celebrá-lo, fui sentar de perna
cruzada ao Café Berio, para um frühstück de croissants com doce, melão, uvas e
sumo de laranja, e rolar notas ao Brunos (de onde saí ruminativo por não ter,
afinal, comprado a mais recente novidade em Berlim: uma garrafa de ‘Tom of
Finland Organic Vodka – Master of Malt’). Segui depois por Nollendorfstraße,
virei por Eisenacherße e regressei a Motzstaße para visitar a Prinz Eisenherz,
a primeira livraria gay na Alemanha,
fundada em Berlim no ano de 1978. Uma hora mais tarde, absolutamente embevecido,
tendo já inspeccionado com meticulosidades de fã, e por diversas vezes, cada
fotografia de Steve Schapiro e Lawrence Schiller do volume da Taschen sobre a
minha eterna Barbra Streisand, saí deste
site histórico com um orgulhoso volume da “Fluffer” na algibeira, e avancei
cantarolante por Kalkreuthstraße, para fazer compras na Boner Store, onde conheci
e me detive a conversar com Roman Socha. O fim do arco-íris desta muito
colorida manhã fui pontuá-lo ao Schwules Museum, o primeiro museu (e centro de
investigação de coleções focadas na história e cultura LGBT) inteiramente dedicado
à história gay. Até ao dia 25 de
fevereiro, como parte do programa “Jahr
der Frau_en” (“O Ano da Mulher”), esta instituição tem em display uma homenagem à activista Mahide
Lein, como parte da exposição “Tapetenwechsel” (“Uma Mudança de Cenário”) com que o Schwules oferece uma visão histórica
sobre os movimentos de liberação gay/lésbica, desde a Idade Média até à actualidade.
Depois de vaguear pelos corredores do recinto, sentei-me na pequena esplanada do
museu a beber uma Fritz-Kola, enquanto folheava a “Fluffer”.
De seguida, apanhei
o U-Bahn de Nollendorfplatz para a East Side Gallery, em
Friedrichshain-Kreuzberg, ao longo das margens do rio Spree, no lado leste do antigo
Muro de Berlim. Fundada após a bem sucedida fusão de duas associações de artistas
alemães: a VBK e a BBK (Bodo Sperling, Barbara Greul Aschanta, Jörg
Kubitzki e David Monti), compõe-se de 118 murais pintados por artistas de 21 países,
nomeadamente Jürgen Grosse, Dimitri Vrubel, Siegfrid Santoni, Bodo Sperling,
Kasra Alavi, Kani Alavi, Jim Avignon, Thierry Noir, Ingeborg Blumenthal, Ignasi
Blanch i Gisbert, Kim Prisu, Hervé Morlay VR e outros. É uma cultura de
juventude sem memória viva do comunismo, fluidamente entregue ao convívio e ao entretenimento, que agora me rodeia, que agora me envolve, que agora me absorve; é um espírito de
euforia e esperança de um futuro livre para todas as pessoas do mundo a
alargar-me por dentro, a derrubar os muros todos. E venho a mim vivo – esplendorosamente
vivo: de sonhos, de apetites, de conquistas. Fiquei a jantar no Vegan Vincent
do centro comercial, até regressar ao Aldea. Era a segunda noite em Berlim, era a minha juventude aos gritos, e Motzstraße a chamar-me à rua...
[Continua]
Sem comentários:
Enviar um comentário