I – Pelos Lares dos Meus Amigos (2ª. Parte)
IV – Cheguei trôpego e
esbaforido a Eminönü, onde o cheiro forte a pretzels
e sanduíches de peixe se abobadava enjoativamente sobre o trânsito
frenético das multidões. Bien entendu,
não há medalhas que condecorem a estupidez, mas como se diz de outros
infelizes, os que não são heróis de um ideal, serão heróis de si mesmos. Dilatando
então um peito muito heróico, tomado não sei por que esdrúxula ufania, achei-me
certo de orientações, perfeitamente capaz de prescindir de ferrys e metros no
regresso a casa. Ignorando bússolas e cartografias, avancei galopante por sobre
o Corno de Ouro, acompanhando de olhar mortiço a fila de pacientes pescadores
debruçados para o azul, e chegando ao bico da Ponte de Gálata, meti peremptório
para a direita, confiante que já na parte oriental de Istambul, ao cabo de uns
curtos atléticos quilómetros, depressa chegaria a Kadıköy. Mal sabia que aos
ouvidos do meu fado, Constantinopla segredava a traquina e zombeteira: “Pescador tão entretido / Numa pedra ao sol, / Esperando o peixe ferido / Pelo teu anzol, / Há um fio do céu descido / Sobre
o teu coração: / De longe estás sendo
ferido / Por outra mão.” (Cecília
Meireles). Como resultado da soberba, caminhei horas a fio alheio às minhas
coordenadas, tropeçando de fome e de cansaço, incapaz de parar, movido pela
vaga expectativa que aos perdidos entretém o passo, de que o destino triunfaria
ao virar da esquina. Mas ai de mim, cada esquina que virasse não girava senão para
a desilusão, e a desilusão para o desânimo; incapaz de fintá-lo, levantou-se-me
aos borbotões um arreliado humor que a todos queria soltar cães aos
calcanhares. Polícia algum me valeu ou taxista – fazendo gestos onde o inglês não
saía, todos teimavam no mesmo: Kadıköy parecia ficar “do outro lado”. Ora se do outro lado tinha eu vindo, como podia ser
que tivesse de atravessar novamente? Anoitecia sobre Istambul e eu rogando trinta
e sete pragas à cidade, com Sedef à minha espera para o aniversário de 30 anos
de Beylem Gürsoy, amiga que partilhávamos em comum, a bateria do telemóvel
rasando o turning off. Valeu-me, à
distância, a ajuda de quem me localizasse através do Google Maps, e uma rendida
chamada à minha anfitriã, para enfim perceber o medonho logro que havia cometido:
além da divisão leste-oeste, a parte histórica do lado europeu é dividida no
sentido leste-oeste pelo Corno de Ouro, porto natural e estuário de uma ribeira
orientada no sentido noroeste-sudeste, situado a norte da península histórica
onde foi fundada Bizâncio (o Cabo do Serralho ou Sarayburnu, atual distrito
urbano de Fatih). Achando que transitava já para o lado asiático, não tinha
feito mais que atravessar para a outra metade do lado europeu. Eram as 19h
quando de Karaköy atravessei, bulindo de frustração, para Kadıköy. De pronto,
porém, um sorriso me alargou os beiços ao ver Beylem esperar-me no cais. Acorri-lhe
num abraço, e a passo lesto, excitado e palavroso, partimos por uma muito
movimentada Kadıköy nocturna, recordando as longínquas aventuras em solo
português. Amesendámos no Çiya Restorant para as delícias de um meze, de um türlü, keskek e bulgur pilav, depois do que rumámos em
flecha para o Muaf, onde as bebidas circulavam já entre os convivas da festa. A
quase trintagenária foi recebida com gritinhos de entusiasmo, beijada por quantos
circundavam a mesa, e mimada de presentes, incluindo uma pequena tabuleta de
papel onde se podia ler: HAYAT 30'DAN SONRA BASLAR (“a vida só começa aos 30”), e dois gordos balões em forma de «3» e «0».
Seguiram-se as pilhérias, um mais sonoro restolho de copos em brinde, o bolo de
aniversário, o cantado “mutlu yıllar sana
mutlu yıllar, sevgili Beylem mutlu yıllar sana”, as intimidades zonzas do álcool,
e em pouco tempo, o passo saltitante de bar em bar, à procura de mais gozo e diversão.
Parámos primeiro no Kadıköy Sahne para assistir a um concerto, movemo-nos
depois para o famigerado Pendor Corner onde não só conheci as dores e as delícias
de um Bitch in Town, como também, aos
pares, nos batemos em competição para ver quem bebia mais rapidamente o seu shot de hönönö. Pelo caminho, aos encontrões de embriaguez, Baylem deixou escapar o seu «0», e pouco mais à frente, o seu «3»; em desmanchada risota, fazendo comédia do sucedido, houve quem gritasse "You're ageless now". Por último, adentrámos o
Dorock XL, a poucos metros de distância, para dançarmos o after party. Ali, pude reavaliar a sensação de vazio que a subida a
Sultahnamet me provocara – estava agora repleto, estava de novo feliz. Percebi,
por fim, a enigmática associação que o inconsciente me fizera ao «Centeio que
Mata». O pitoresco e o colorido de que tanto se ouve falar põem num ocidental a
expectativa de vir à Turquia assistir a um espetáculo exótico. O visitante
distrai-se com a história dos trajes pitorescos, dos palácios dos sultões e dos
seus altos funcionários, com o exotismo das populações e com os monumentos e não
vê mais nada. Mas “o pitoresco é devido,
quase sempre, ao atraso social, a elementos primitivos e, muitas vezes, à
miséria do povo”; o pitoresco serve “para
ocultar a verdadeira fisionomia de Istambul”, quando o que se quer é “uma
cidade sincera, humana, em que o valor do homem não esteja no seu pitoresco,
mas no facto de ser homem. Todos ouviram falar numa Istambul maravilhosa, cheia
de riquezas e de esplendores. Mas, basta ver o que ela ainda é, mesmo depois do
muito que fizemos ultimamente, para se avaliar o que seria na época do
sultanado. Tinha muitos templos e palácios, é verdade, e, por isso, se confundia
a parte com o todo” (Ferreira de Castro).
Era sobre esta expectativa que meditava. Era este o espetáculo de façades que recusava aceitar no
imaginário: queria antes a crueza e sinceridade do humano, queria a gargalhada
sonora da convivência com o Outro real, calcar aos pés toda a inútil falsidade
das idealizações ingénuas. «Here's the church, and here's the steeple / Open
the door and see the people…». Alto ia o riso, esquecendo de
Istambul as suas matreiras prestidigitações, e ao pião do corpo deixei-o que
rodasse e rodasse e rodasse, como um darviche em ato devocional à alegria de
estar vivo, até eu e a noite nos fundirmos a nível quântico e sermos um són nuclearmente…
V – Conquistada a consciência
desta benfazeja abertura, não estranhei que quisesse apressar-me a garantir a
companhia de Umur, no dia seguinte. Acordando da ressaca com a alegria de alguém
que se vê chegar ao ponto de Arquimedes da idade de um homem num renovado mote
de vida – HAYAT 33'DAN SONRA BASLAR –, atravessei de novo o Bósforo para me
encontrar com Umur em Eminönü; seguimos depois para os arruamentos de Fahti,
onde nos sentámos a almoçar um Shish
Kebab de frango. Ao cabo da refeição, acariciando a crescente proeminência
abacial da barriga recém-satisfeita, deitamo-nos a passear calmamente pelo
bairro, passando círculos de istambuliotas sentados a beber chá e café, e a
saborear talhadas de melão pela rua. Gatos por todo o lado. Atravessámos a pé para
Karaköy, pela Galata Köprüsü, de onde o meu amigo me deu a conhecer os portentosos
interiores de Salt Galata, a conhecida instituição de arte contemporânea. Poucos
metros adiante, subimos as Escadas Camondo em direcção à Torre Gálata. Àquela hora,
a praça pulsava de agitação, pelo que decidimos sentar à sombra de um café,
altura em que aproveitei para partilhar com ele os meus recentes insights sobre Istambul. Toda a criação, disse-lhe, se
arrasta de pólo a pólo num altissonoro vagido de dor parturiente; segue-se que
as delícias libertadoras do alívio se sobreponham à última contração
expulsante, quando para nosso regaço tomamos, por fim, o produto criativo na
sua versão derradeira. E o que é lei de vida é lei na arte: da penumbra do
imaginário criador, amadurece e cai no mundo um algo de novo, objeto de luz,
extraido do inexistente, que agora se soma à realidade maior para ser
apreensível pelos demais. Na obediência a este movimento centrífugo, não só a
criação valida a nossa pertença ao mundo, como retroaje sobre a nossa
subjetividade individual, reafirmando-a. Eis porque a criação é,
inescapavelmente, um processo relacional – mesmo que não interativo, i.e., não
objetivamente exposto ao olhar dos outros. Na minha experiência, há um sentido
de missão que me transita do sonho para a dor, que me leva da dor ao alívio, e
é de querê-la cumprida que recai sobre cada andamento do processo um
febricitante feitiço de prazer. Ainda assim,expressões artísticas como a
escrita de literatura ou poesia podem ser bastante solitárias. ‘Chá de
Bonecas’, tal como o seu antecessor, ‘A Casa do Passado’, presta-se a
exemplificar bem esta realidade. A despeito de me terem valido um
primeiro prémio de concurso literário, e constituirem um marco no percurso da
minha afirmação pessoal como criador na área das letras, são hoje artefactos
menos excitantes, obscurecidos pela atualização da minha própria maturidade
emocional. Na verdade, quanto
mais acorro às solicitações do mundo externo, expliquei-lhe, menos apelativo
vejo o isolamento a que a criação me vota. Não surpreende assim que um dos meus
mais gratos prazeres o encontre em partilhar as rédeas do processo criativo com
outra pessoa. Tal foi a oportunidade de ‘Suficiente Solidão’, projeto de
cruzamento entre vinhetas literárias da minha autoria, e homólogas ilustrações
a punho de Umur. Além do gozo de trocar o silente monólogo da produção
tipicamente eremítica pelo activo confronto dialógico entre ambos, de me sentir
rumo ao encontro do outro, ser inspirado pelo outro, e derradeiramente
encontrado pelo outro, o projeto permitiu-nos uma sadia evolução conjunta, em
sintonia com a moral da história (pois na altura, éramos os dois vítimas de um coeur brisé), eternizando-se em história
viva, para lá da categoria de mero happening,
continuando ainda hoje nas constantes renovações da nossa amizade. Se no tempo do ‘Chá de Bonecas’
fruia de atrever uma forma de eternização contra a noção da minha
própria finitude – com efeito, as únicas coisas que restam e lembram todas culturas
anteriores à nossa são os seus escritos –, e a ânsia maior se constelava em
torno do produto final, com ‘Suficiente
Solidão’ passei a recitar o famoso credo horaciano, a não querer da
imortalidade jura alguma de boaventura, a deixar os caminhos da glória, da
graça e da gravidade partirem audaciosos sem mim, preferindo antes do processo,
o gosto da companhia humana que me faz os dias mais presentes. De preferência
amesendados. Assim – tal e qual como estávamos os dois, naquela morna tarde de
domingo, em feliz confraternização, defronte à Torre Gálata. Algumas horas mais
tarde, subíamos já pela longa avenida
Istiklal, onde nos entretivemos a explorar lojas vintage e comprei uma caixa de lokum, a inebriante sobremesa turca feita de amido de milho e açúcar, coberta com açúcar de confeiteiro. Seguimos até à praça
de Takshim, rumorosa ao som da chamada à oração gritada pelos altifalantes das mesquitas, e depois para Cihangir; aí, numa qualquer rua, sentámos a
cantarolar. Já noite densa, despedimo-nos com um abraço forte antes de eu
saltar para o ferry e voltar a Kadıköy.
Trazia música nos cabelos e açúcar de confeiteiro nos dedos. Sorri para a
avenida negra do Bósforo cujas águas me levavam, seguro, de regresso ao lar dos
meus amigos. Como é bom, pensei de mim para mim, como é bom ser contado entre
os homens…
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