quarta-feira, 19 de setembro de 2018

ISTAMBUL & CAPADÓCIA (2º. Capítulo: "Ser Contado Entre os Homens")

2: Ser Contado Entre os Homens

I - There is an old joke about two english men who were cast away on a desert island for three years. It appears they never spoke to each other. Because they haven’t been introduced”(1). Istambul conheceu-me partícipe da oposição à febre das aparências. Era ao Outro que queria –  a mover-me entre os homens, a segui-los, a pertencer-lhes. A ideia da nossa coexistência, tenho-o seguro, pressupõe que esta se desenvolva e realize no mundo, pelo que o próprio sentido existencial se torna dependente da chamada do Outro. Ponha-se pois que tudo é relação, que no princípio não é o eu, mas o Outro – um encontro anterior a toda a imemorial criação, não-violento por natureza, dois pólos equivalentes constituindo-se em perfeita reciprocidade, nenhum deles dependente ou submetido entre si. Pondere-se agora a patada de violência que os princípios racionalistas unívocos da filosofia ocidental desferiram sobre a alteridade; pondere-se bem o rombo que a antropologia dominada pelo ego perpetrou sobre a imprescindibilidade do Outro na formação do indivíduo. Não deixa de ser comitrágico como na sociedade supraindividualista que formamos, onde cada ação humana se vê mais e mais regida pela indiferença de todo um medonho sauf qui peut, que a mais transversal a todos os casos que atenda, e aquela que mais flagrantemente se revele – ainda que nem sempre por expressa declaração –, seja a necessidade de cada um/a ser amado/a, inteiramente ‘propium’, aos olhos do Outro. Com efeito, cada cliente que atenda é, em si mesmo/a, uma saudável declaração de dependência; as suas queixas são sempre queixas de fios relacionais ou demasiado apertados, ou demasiado lassos. E nós, vilipendiadores/as do nosso direito de primogenitura, curvamos, em vexado silêncio ao miserabilismo deste imenso segredo de Polichinelo, sem garra para virar o tabuleiro, sem espinha para afirmar o que queremos, sem tacões para defender o que precisamos. E empurramos o Outro para fora da moldura, deixando que se instale um espírito de manipulação e de instrumentalidade, que o relacionamento interpessoal perca o carácter direto e humano. Eu queria abraços. Múltiplos, torrentosos, em proporções de monção, para os que não houvesse guarda-chuva resistente. A todo o pano, em queda-livre, de malas e pé fincado, do alto à diagonal, até ao sufoco, até à xifopagia, até à fusão indestrinçável (da fusão sem confusão). Dos fortes, dos wrestlerianos, dos à la Godzila, dos das fábulas sem moral, dos que desalinham o make-up e despenteiam papelotes, dos que magoando um pouco os ossos se atiram, doidos, às portas da alma, que são trick and treat simultâneos. Abraços que se deixem entrar, nem sempre sem licença concedida, abraços party-crashers, de caroço e polpa cheia, abraços-medicina para a cura deste parvo higienismo sensitivo que a sociedade atual teima em disseminar no pavor de qualquer atentado ao seu eu logocêntrico. Os dias de hoje vêem-nos demasiado clivados entre espírito e matéria; estamos a perder a compreensão e experiência desta última como a algo sagrado, como algo a honrar e a fazer preito. “O culto dos sentidos tem sido frequentemente, e muito justamente, condenado, dado que os homens sentem um natural instinto de terror em relação às paixões e às sensações que parecem ser mais fortes do que eles, e de que têm a consciência de partilhar com formas de vida inferiores. Mas era evidente […] que a verdadeira natureza dos sentidos nunca fora compreendida, e que permaneceram indomáveis e animalescos unicamente porque o mundo procurava submete-los pela abstinência ou matá-los pela flagelação, em vez de procurar transformá-los em elementos de uma nova espiritualidade, em que um elevado instinto de beleza seria a característica dominante”. (Oscar Wilde). A morte do Outro adoeceu o afeto, fez-nos inaptos para o diálogo, deficitou-nos a socialização, estranhou-nos para o isolamento, deformou-nos a moral. Quando sincero, o afeto não sabe de alfândegas; quando real, não pode esmagá-lo nenhum carimbo de censura. Eu queria rematerializar o corpo, revincular-me ao grupo, tornar as relações interpessoais diretas e corpóreas, dar-lhes ‘xixa’ – ‘enxixá-las’. Neste exato estado de espírito, ressacado das últimas noitadas, visitar os Banhos Çemberlitas, instalados a meio caminho entre o Grande Bazar e a Praça Sultanahmet, pareceu-me a sugestão mais assisada. “Descendente dos banhos greco-romanos, o hamam (banho turco) foi adotado pelos invasores islâmicos, que acreditavam na proximidade entre limpeza e divindade; o banho era uma oportunidade de limpar a pele e desintoxicar o corpo, mas também de fortalecer o espírito”. Os banhos turcos de Çemberlitas, lera-o no guia turístico, haviam sido encomendados a Sinan, em 1584, por Nur Banu, esposa do alcoólico Selim, o Ébrio – filho de Solimão e Roxelana. Após um almoço farto em Karakolhane (chá, galinha marinada em mel e sésamo e cikolatah irmik tath, para sobremesa), parti de ferry para Karaköy e apanhei o eléctrico até Sultanahmet. Durante alguns minutos, postei-me silenciosamente entestando a fachada, e depois de um cavo suspiro de encorajamento, avancei para a porta. 

II - À minha esquerda, vencidos os primeiros degraus, aninhava-se na penumbra um pequeno balcão e, por detrás dele, uma jovem de maneiras solícitas assegurava a receção da clientela. Escolhi o serviço completo de atendimento (massagem exfoliante, massagem de espuma e massagem de óleo), depois do que me foram entregues duas senhas (a confiar aos funcionários que me atendessem), e uma chave de acesso à cabine para a muda de roupa. Chegado ao átrio, espiparam-se-me os olhos ao assalto de três andares avarandados, de onde pendiam múltiplas toalhas coloridas, todos eles percorridos de cabines, um barbeiro, e uma sala de convívio. Segundos depois, pronto a guiar-me à cabine, um sujeito voluntarioso, de bigodinho en brosse e expressão tensa, entregava-me um par de chinelos, uma toalha branca e um pestemal às riscas vermelhas e brancas. Já despido, de pestemal à cinta e chinelos aos pés, tornei ao átrio de onde passei portas para a Sogukluk (a Sala Fria), e desta para a sumptuosa Sala de Vapor, toda ela mármore salmão, paredes e tetos, com um gigantesco palanque octogonal ao centro (o göbek tasi). Ao estender-me sobre o octógono aquecido, esperando ser servido, tornei a vista para o teto em cúpula, apoiado em 12 arcos erguidos em colunas de mármore, furado por «olhos de elefante» em vidro, que canalizavam a luz através do vapor para o chão. À volta, em quatro cubículos privados (os halvets), encontravam-se bacias de pedra com torneiras de água fria, morna e quente. Não tardou muito, até que um sujeito barrigudo, de olhar astuto e sorriso trêfego, iniciasse a massagem exfoliante, a que depois se seguiu a de espuma. «Sit», «Lay», «Turn», «Sit», «Lay»... Esfregado e resfregado, a compasso das suas monossilábicas ordenações, o meu corpo tomava-lhe nas mãos uma flacidez de puppet desconjuntado. Por fim, desempenhadas as esperadas funções, volveu num cauteloso inglês gutural: «No problem? No problem?». Estatelado contra o mármore, vendo-o de baixo como a uma imagem santa, pestanejei de mal acordado. Que dizia ele? Entortei o cenho na penosa expressão de quem se esforça para compreender um enigma; dando conta da minha ruga, puxou de alternativas e tentou o germânico «Gut? Gut?». Fez-se enfim compreendido. Sim, aplaquei-o: «All good. Teşekkür ederim». Sequenciando a minha aprovação, apontou para o dístico numerado que enroscara ao laço do pestemal e piscou-me o olho. Embora inseguro, sorri cumplicemente, como concordasse, e dali seguimos para a Sogukluk, onde me sujeitou a vários baldes de água fria. Fui então introduzido numa outra sala, contígua àquela, onde um novo funcionário me deitou pela extensão de uma marquesa, para a massagem a óleo. Quando por fim me reposicionou perpendicular ao chão, ardiam-me os músculos, mas uma lassidão boa de relaxado punha-me no espírito uma paz de serenidade. Ao despedir-se, também ele apontou para o dístico que trazia ao pestemal, os olhos luzindo de ganância; e quando do duche à cabine, passei ao átrio, encontrei-os a ambos, num cerco de abutres cobiçosos, cruzando braços, expectantes, à coca de gorjeta. Para sua exultação, decidi cumprir o que sugestionara. Depois, mais pobre de carteira, sentei no átrio a beber um sumo de romã e laranja, pensando nos próximos passos. Corporeamente renovado, voltei ao sol de Sultanahmet, e liguei a Umur para sondar a sua disponibilidade. Combinámos que o alcançaria em Kocamustafapasa; depois de uma longa viagem de autocarro, acabaríamos por assentar em sua casa, e encomendarmos uma pizza. De pernas estiradas pelo sofá, cada um abocanhando o cilindro do seu Marlboro, passei em revista a minha experiência nos Banhos, e Umur contou-me do trabalho que conduzira no hospital. A conversação resistiu durante horas, até aos primeiros cabeceares de sono. Quando Umur me levou à paragem de autocarro, despedimo-nos num longo abraço. Não mais tornaria a vê-lo até ao regresso a Portugal. Dali, regressaria à praça de Taksim, e de dolmus voltaria à zona oriental. Já em casa, Sedef e Mesut esperavam-me para uma última cerveja. Grande era o cansaço, mas mais excitavam as infiniformes possibilidades que o amanhã me reservava. Aos poucos fechei os olhos... 























[1]Há uma velha piada acerca de dois ingleses que haviam naufragado numa ilha deserta, durante três anos, sem nunca terem falado um com o outro – pois não haviam sido apresentados” (T.d.A.)

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