quinta-feira, 20 de setembro de 2018

ISTAMBUL & CAPADÓCIA (3º. Capítulo: "O Rapaz de Malatya - 1ª. Parte")

3: O Rapaz de Malatya (1ª. Parte)

I – Pelas 10 da manhã do dia 11 de setembro, seguindo as recomendações da «Alethea Travel Tours», sentava eu no ferry para Karaköy, mordiscando, seca, a argola de um simit, com intuitos de chegar à agência «Turista Travel» e auscultar a possibilidade de uma ida à Capadócia. Quando atraquei em Eminönü, segui de elétrico para Sultanhamet e em breve me vi no número 16 da Divanyolu Caddesi, entestando uma funcionária de enormes olhos pestanudos, a quem expliquei as minhas intenções. Lamentavelmente, informou apologética, nenhum autocarro para a Anatólia Central demoraria menos do que 11 contínuas horas de viagem; também o comboio até Ankara e respectivo transfer para terras capadócias me tomariam mais do que o tolerável. A dois dias do regresso a Portugal, não restava alternativa senão partir nessa tarde. Marquei então passagem de avião para Göreme, e de um dos mais apetitosos flyers em display numa das montras da agência, incluí no programa de festas um tour de balão-de-ar-quente e uma excursão pelo norte da Capadócia, à responsabilidade da empresa «Flintstones». Não havia, porém, tempo a perder. Receando atrasos, lancei-me a trote para Istambul oriental, organizei o backpack para as exigências do novo destino, e às 14 horas on the dot, conforme apalavrara, desci Divanyolu Caddesi rumo à «Turista Travel», de onde partiria, em shuttle, para o aeroporto de Atatürk. Contudo, devido ao embargo provocado pelas cheias, o que poderia registar-se na memória como um rápido trajecto sem polémica converteu-se num moroso teste ambulante à paciência de cada passageiro. Quanto mais fundo queríamos o pé no acelerador, mais o trânsito parecia empancar. Aos soluços, no irritante pára-arranca da perturbada circulação, chegámos ao aeroporto justo a tempo de embarcar no TK2008 para a Kapadokya. A 11 000 metros de altitude, vendo nas nuvens a crosta espumosa de um ayran gigante derretendo pelo rubro-alaranjado do lusco-fusco, abri brochuras informativas para ler: “A Capadócia é conhecida em todo o mundo como um dos melhores sítios para voar com balões de ar quente. As espectaculares paisagens surrealistas, combinadas com condições de voo excelentes, permitem aos balões deslizar suavemente sobre e entre as chaminés das fadas, casas de pombos talhadas nas formações rochosas únicas, pomares e vinhedos – através de vales impressionantes, cada um com formações rochosas específicas, cores e formas – e depois flutuar sobre as ravinas onduladas com vistas de cortar o fôlego sobre a região”. Eram então 19.30, e pouco faltava para chegarmos a Nevşehir. Quando por fim aterrámos, um novo shuttle aguardava por mim com destino ao Göreme Kaya Otel. Entrei, cumprimentando os que ali faziam presença, e pouco depois, o motorista engatou a primeira velocidade para que o pequeno autocarro deslizasse de encontro à estrada. Avançámos por Göreme em linha reta, pelo que me pareceu uma planície sem fundos. Tremelicando ao fundo do shuttle, via lá fora, ao longe, a casinhotagem das aldeias acender uma e outra luz-de-presença na noite escura. Göreme é uma vila pertencente ao distrito e província de Nevşehir e à região administrativa da Anatólia Central da Turquia. Ocupando alguns vales pitorescos, apresenta testemunhos da intensa atividade monástica que ali se viveu entre os séculos V e XII — existem cerca de cinquenta santuários que celebram a vida de Cristo e outras cenas sagradas em frescos preciosíssimos. Cheguei ao Kaya – o primeiro hotel boutique, em toda a região, a ser entalhado nas rochas – perto das 21.30, onde prontamente me deixaram o reminder de que a tour de balão começaria às 5 da manhã. O quarto, confortável na sofisticação do que se lhe gabava em deluxe, era um discreto pedaço de céu. À francesa, estirei-me por sobre a macieza horizontal do grande colchão single, sentindo o corpo latejando de cansaço afundar no reparador conforto dos seus cetins. Um langoroso espreguiçar de gato mais tarde, reativei-me e, munido de uma toalha de banho, desci à piscina interior para alguns laps relaxantes. Quando tornei ao quarto, a excitação era tal que se me não abonou o descanso. Limitei-me a remansear pelos lençóis, revendo os planos para o dia seguinte. Seria recolhido ao Kaya antes do nascer do sol, e levado até à zona de descolagem. Assim foi. Horas mais tarde, perseguindo o extenso túnel da noite, chegava ao posto da «Ürgüp Balloons», estremunhado e feliz, onde os diferentes grupos de excursionistas se organizavam para a receção do briefing, e um pequeno-almoço à base de bolos e sumos era oferecido à discrição. Formando grupo com outros passageiros, foi-me atribuído um dístico e um shuttle para a zona de descolagem. À medida que batíamos estrada, víamos a horizonte, pelo quadrado das janelas sujas, a crista colorida de vários aeróstatos em processo de enchimento, ligados pela boca ao cano dos respectivos queimadores, subitamente iluminados na penumbra da madrugada por um breve espirro de fogo. Alguns modelos vogavam já pelo ar cinza-azulado, como estranhas frutas que pairassem alheias à força da gravidade e nos chamassem, tentadoras, para um paraíso de entre nuvens. Depois da fotografia em conjunto, subimos um a um, para o interior do cesto, onde nos foram explicadas as regras básicas e as medidas de segurança a reter durante o voo. Quando a felicidade é tantas vezes pervertida para os excessos da euforia, tão terrível, tão sinuosamente hipervalorizada pelo postiço das expectativas sociais, quando nada exclui aos seus bastidores um temperamento rude, áspero e insensível, digo com Wilde que “o suficiente é tão satisfatório como um grande banquete”, e prefiro-me a boa zufriedenheit da tranquilidade. Mas Stendhal tem a sua razão ao afirmar que a Beleza é uma promessa de felicidade. Assim que o piloto accionou o maçarico de ar quente, o coração largou em métrica descompassada, e aos poucos, muito suavemente, o enorme cesto carregado de expectativas despegou do chão para as alturas… 

II – Subia no ar, contado no número dos homens, observando a excitação e a alegria de quantos me rodeavam, participante pleno num cenário de Beleza indescritível; dei por mim a chorar de feliz como a criança para quem o mundo é uma constante feira de diversões. Suponho que me não tivesse sintonizado na frequência da continuidade histórica a que digo pertencer se a todo um sentido estético apurado por séculos de demorada evolução, me não tivesse educado a experiência do existir numa determinada lógica de elaboração emocional, tal como não teria abraçado esta estética se os rios da ancestralidade, a confluir no que trago de singular, me não tivessem predisposto as águas ao gosto de um certo toque salino (isto de ser Marinho tem que se lhe diga). A sugestão de Beleza impressiona-me como uma agradável légèreté de que se indistingue o exercício da minha própria respiração. Tenho vivido para a Beleza e pela Beleza das coisas – reconhecê-la e enfatizá-la no que vou percepcionando e experimentando, converti-o na paixão com que até agora tenho dourado a extensão das minhas horas. Na medida em que o meu esforço criativo se vaza nos moldes da encarnação da ideia através da forma em função da Beleza, a Beleza define-me como esteta. A atividade como esteta fez-me perceber que não há evolução pessoal sem o desenvolvimento de todos os canais, mecanismos e dinâmicas de expressão, que não existe vida sem criação e criação sem a possibilidade de transformação e reconstrução, e que sem estes elementos não há felicidade. Mais tarde, a Psicologia permitiu-me não só perceber-me dotado de todas as possibilidades para a minha auto-realização, e instrumentalizado internamente com todas as ferramentas necessárias para o desenvolvimento das minhas competências físicas, morais, pessoais, relacionais, sociais, intelectuais, interculturais, mas também ativá-las para ir actualizando uma versão cada vez melhor de mim mesmo. Quantos mais pés de altitude batia, mais envolvido estava no gozo da minha auto-atualizaão. Desde longe trago a atenção em alta a tendência para fremir pelas mais pequenas coisas, de me comover mais facilmente a propósito de qualquer minúcia, uma urgência analítica e insaciavelmente curiosa na operacionalidade das minhas faculdades cognitivas, uma necessidade premente de adquirir conhecimento, de ter a mente ininterruptamente ocupada, entretida a observar, a examinar, a perceber, a cruzar, a criar – um constante alerta de emergência, um querer ser muito, um querer ser tudo, e tudo ao mesmo tempo. De repente ali estava eu, rodeado de infinitos balões, réplicas de mim mesmo, repetindo-me até à eternidade, e tudo era uma expansão de peito para lá das possibilidades. Ganhava asas – voava, mais alto, mais depressa, mais além. Suponho que a grande batalha que trave seja então contra os desânimos do onismo, esse triste reconhecimento do muito pouco que conhecerei do tanto que há no mundo a conhecer-se. Suponho que tenha um bocadinho de Schopenhauer em mim ao defender que somos tanto mais quanto mais nos for dado a conhecer existir. Ganhar. No que der, quanto puder. Ganhar tempo, ganhar tino, ganhar-me o pão, ganhar a horas, ganhar nome, ganhar raiz, ganhar coragem – ganhar! – ganhar simpatias, ganhar-lhe o beijo, ganhar confiança, ganhar-lhe a confiança, ganhar a partida, ganhar a dianteira, ganhar-me a própria palma. Ganhar! A essa auto-atualização brindei eu quando aterrámos para a esperada celebração a champanhe, e nos condecoraram com medalhas. Seriam as 8, quando de regresso ao Kaya, saí para a esplanada do restaurante e me sentei, de perna cruzada, a reforçar o pequeno-almoço. Não dispunha de muito tempo até que o shuttle para a expedição me viesse recolher. Estava no átrio do hotel, displicentemente tamborilando os dedos por sobre o mármore do balcão, quando um trintagenário de feições mefistofélicas se me abeirou para me conduzir ao autocarro da expedição. Descemos a colina até ao centro de Göreme, e aqui, findas retorcidas voltas pelos vários stands, lojas e restaurantes, estacionámos diante da empresa «Flintstones», responsável pela organização. Leve, alegre e livre, sem dor que me não coubesse inteira na cuba de um dedal, fazia-me prestes de realinhar as costas contra as costas do assento, quando sem nada que lhe anunciasse a aparição, o vi pela primeira vez. Ao rapaz de Malatya.














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