sábado, 22 de setembro de 2018

ISTAMBUL & CAPADÓCIA (Último Capítulo: "O Rapaz de Malatya - 2ª. Parte")

3: O Rapaz de Malatya (2ª. Parte)

I – Lépido e estrepitoso, à la cowboy dos vales capadócios, aterrou de um pincho para dentro do shuttle, aquele que viria a conhecer como o rapaz de Malatya. Estacado no assento, fixei-o pelas intermitências de um pestanejar atónito, sem que se me tornasse imediatamente compreensível o motivo do tanto rumor que espumava em torno. Também ele na casa dos trinta, atlético e trigueiro, vinha de camisa azul-bebé abrindo ao peito espadaúdo o desmaiado fole de uma janela em ‘S’ estreito; e nas mãos calejadas segurava uma checklist que percorria de alto a baixo pelo negrume dos Ray Ban, firmemente aparelhados à afilada sela do nariz. Havia nele a astúcia-zweifel da águia – um olho no peixe, o outro no gato – mas também a melancólica ciência de saber que quanto mais se eleva menos visível se torna e é castigado com a solidão da alma (Stendhal). Já antes aqui estivera, detido nas barreiras deste fremente reconhecê-lo. Lembrei-me das confissões que a Contesse fizera no meu «Entreatos»: “aquele andante suave e lamentoso tomou-me de assalto. O poder de penetração era tal que me subjugava, enquanto a música parecia falar-me, sussurrando aos ouvidos: Pauvre enfant, dans un jour d'effroi/L'amour a-t-il semé ta vie?”. Ao cabo de um impreciso número de verificações, apontou para mim e para outro passageiro o dardo do indicador resoluto, pedindo em inglês nervoso que o seguíssemos para o interior de outro shuttle. Terá sido a sua brusquidão de modos, quase em revolta pela própria trapalhonice, que me fez chegar impressões de uma vulnerabilidade insegura; como a querer ocultar-se atrás de máscaras. Nesse momento, senti que me apiedava das manhas istambuliotas, e um sorriso triste animou-me os lábios. Quando trepei a bordo, o novo grupo recebeu-me no elástico de uma malha de sorrisos: Karen, a sexagenária da Califórnia, que de antemão comprara cinco anos de carreira laboral para que pudesse agora gozar de uma muito agradável reforma itinerante, Tian Chaochen, o criativo hipster com quem haveria de disputar, em comédia, o formato de uma das rochas do Pashabagi (ele dela dizendo ser um camelo, e eu um caracol); havia ainda um amoroso casal chinês de filho ao colo, um muito cúmplice casal italiano rondando os seus 40’s, irmão e irmã, e respectivos consortes, todos de origem árabe, um casal da Cidade do Cabo e, por último, uma senhora de gracioso envelhecer, também ela provinda da África do Sul. Assim que nos acomodámos, Hilal apresentou-se como guia da nossa tour pelo Norte da Capadócia, e adiantou-se ao motorista num simpático reconhecimento da sua presença ao volante. Seguiram-se as explicações acerca da geografia capadócia, atribuída – dizia Hilal num afã professoral – à ação combinada da atividade vulcânica de há 10 milhões de anos, e da erosão provocada pela água e pelo vento, esta última acentuada por areias resultantes da desagregação das rochas menos compactas. Daí, teimava ele, as estranhas formas rochosas a que haviam dado o nome de chaminés-de-fada – grandes colunas naturais em forma cónica que sustinham no seu topo um bloco de rocha maior, onde permaneceria até a erosão não mais lhe permitir sustentáculo. Olhando em volta, à medida que o shuttle avançava pela estrada, lembrei-me dos versos de Flecker: “Não passes por baixo, ó Caravana, ou não passes cantando / Ouviste aquele silêncio em que os pássaros estavam mortos / e, contudo, qualquer coisa piava como um pássaro?”; desceu-me em arrepio pelo corpo um susto de frio ao imaginar a lenta espera de cada um destes pacientes Atlas estáticos, erguidos no cavo silêncio dos descampados – a lenta, penosa e consumptiva espera até à queda derradeira. A primeira paragem ocorreu a poucos quilómetros, quando o autocarro estacionou numa berma do vale de Göreme, deitando para algumas rudimentares construções escavadas na rocha macia. Uma tenda de souvenirs, uma roulotte de merendas, e dois camelos ornamentados para que sobre eles se fizesse pose, ofereciam ao viajante o que bastasse para um bom flash fotográfico de puro deleite turístico. Esta, continuava o nosso guia, fora terra dominada pelos Hittitas e mais tarde conquistada por Alexandre o Grande; hoje, o que a tornava mais popular eram os vestígios deixados pelos primeiros cristãos que a haviam habitado, e as suas igrejas decoradas com frescos. Tourists not always respect these sites” condenava ele “Sometimes we find their names scribbled on rocks. All sorts of foreing names, like Carlos”, e tornou para mim uma risada trocista, despontando a animação entre todos os presentes. “I’m from Portugal” apressei-me a corrigir com fingida consternação despeitada. Não seria a primeira vez que Hilal tomaria liberdades para troçar de mim; no Vale de Baglidere (ou Love Valley, como chamado pelos turistas), lançou-se a bater-me no ombro, como o faria um irmão mais velho, dizendo, entre gargalhadas, “I’ll punch you all afternoon”. Prosseguiram as explicações: esta era também terra de eremitas, que na altura formavam um grupo social importante, embora nada tivessem que ver com a vida monástica – em extrema reclusão solitária, recebiam tudo quanto lhes constituísse necessidade, por parte da população. Foi no seu encalço que tornámos à estrada, até ao Open Air Museum, a cerca de 1,5km da localidade de Göreme, no cruzamento para Ortahisar. Aqui, contava Hilal, nascera São Jorge, um dos santos mais venerados do catolicismo, imortalizado na lenda em que triunfava sobre o dragão do Mal; contrário porém, à sabedoria popular, informou-nos sorrindo que não fora efectivamente São Jorge a derrotar a fogosa criatura, mas sim um soldado menor, também parte do exército do imperador Diocleciano, embora muito menos glamoroso do que o primeiro. No Open Air, as estruturas eram combinadas sob um museu, e no número dos seus principais edifícios e estruturas, visitámos o Mosteiro Rahibeler, a Capela de São Basileos, a Igreja Elmali, a Capela de Santa Bárbara, a Igreja Yilani, uma Copa-Cozinha e Sala de jantar, a Igreja Karanlik, a Capela de Santa Catarina e a Igreja Çarikli. Depois de batermos a pé toda a vastidão do recinto, viemos recolher-nos à sombra do shuttle. Karen, a quem logo identifiquei esse mongoose instinct de que Kipling falava, entretinha-se a conversar com Hilal. O jovem ia, aos poucos, revelando mais de si, contando como em menino lhe desagradavam as obrigatórias atividades de electrónica na escola; gostava era de ler, e sempre lera muito, apreciava os grandes pensadores alemães, como Schopenhauer e Espinosa; o seu modesto sonho era continuar a aperfeiçoar línguas para garantir maior estabilidade financeira (“Chinese will bring me great fortunethe future is Chinese”). A simplicidade do relato foi absolutamente comovente, e pôs-me no coração a saudosa memória de Yusuf e da sua história: “Era uma vez um menino nascido em Mersin, que a contragosto vendia fruta na mercearia do tio…”. Quando voltámos ao shuttle, girámos para Avanos, em direcção ao restaurante, depois do que seguimos para uma visita guiada aos interiores de uma olaria, cujos produtos, feitos em instalações caseiros, ficavam a cargo de elementos de família. Aqui, no suave encosto de uma saleta de visitas, a beberricar elma çayi, foi-nos dado a assistir um exercício de moldagem em barro pelas mãos do elemento mais novo da família de oleiros. Mais tarde, levar-nos-iam a percorrer os vários andares da loja o que, para a esposa de um dos árabes, resultou em múltiplos e felizes acréscimos à decoração doméstica. Voltámos à van, desta vez rumo a uma casa de tapetes. Durante o trajecto, Hilal explicou-nos que “a long time ago”, as raparigas eram escolhidas pelas mães dos pretendentes em função dos tapetes que bordassem, por forma a perceber até que ponto a paciência lhes faria elogio. Because the most important thing in a marriage” rematou ele, sorridente “It’s patience”. A incursão pela loja de tapetes em Beysehir foi extensa e cansativa; atiraram-nos aos pés todo o tipo de produções: os hali, os kilims, os cicims e os sumaks, e entre um e outro gole de um renovado chá de maçã, lá fui tornando para Tian Chaochen um solidário revirar de olhos entediados...

II – Perto das 17h, exaustos da viagem, regressávamos ao shuttle; Hilal aproveitou para elogiar a competência do motorista, dizendo “I love this man”. Do assento fronteiro, cofiando a patriarcal barbicha cinzenta, o árabe inclinou-se para diante, exclamando sorridente num inglês torto: “I can’t say love this man, because man love only the woman”. Hilal assentiu num acesso de mesuras apologéticas, e sondou de olhos postos em mim que alternativa poderia utilizar. Acudiu-me Alfred Douglas, e o seu a love that dare not speak its name, e de um inventário de capital linguístico apropriado ao decoro islâmico, propus o verbo «to admire». Meneando a cabeça em sinal de apoio, Hilal apressou-se a corrigir a penalização, e piscou-me o olho em gesto de agradecimento. Sorri interiormente. Na delícia e na tristeza dessa íntima partilha. Humano que se veja proibido de ser em liberdade, a quem se lhe dissuada – passiva ou agressivamente – a necessidade de ampliação pessoal, é humano que de certo acabará deprimido nos engasgos de uma implosão. Uma educação que substitui os potenciais dos alunos pelo conformismo à coletividade, que incentiva a que o valor que nos atribuamos radique num parâmetro imposto desde o exterior, regulado por terceiros, não poderia ter outro efeito. Entendê-lo, no meu ponto de vista, reclama o uso de uma abordagem crítica por parte da epistemologia moderna, e um ativismo omnipresente em militância a favor da liberdade – sobretudo a liberdade rúbida e ruidosa, canhão à solta, numa chinfrineira de Carnaval rua afora, a desoras da decência, a bater tachos e tacões, arrastando garridas traînes de purpurina e de missangas, a que se edifique na celebração do que é honesto e coerente, a delatora de tóxicas invisibilidades, a que se sagre roteiro de humanização, que nos acorde a todos/as deste coma lúcido de passividade. Ia neste ponto das minhas elocubrações, quando Hilal se voltou para continuar o seu self-disclosure. Que vinha da Malatya, uma cidade do sudeste turco, parte da Região da Anatólia Oriental, regada por afluentes do rio Eufrates. As suas terras, prosseguiu, eram famosas pelos seus damascos (também chamados de apricó, abricó, abricô, abricoque, abricote, alberge, albricoque, alpece, alperce e alperche), comestíveis ao natural e internacionalmente consumidos como fruta seca e em doces. O meu sorriso alargava ao vê-lo gesticular o corpo recurvo sobre nós, em pose de quem instrui, na ânsia de mostrar os tantos conhecimentos a quem o validasse, ao decote flutuante da camisa cobrindo e destapando o peito, à graciosidade felina dos olhos penetrantes. Havia algo de impronunciavelmente genial na contracurva da sua maçã-de-Adão. Pela oblíqua, o sol entrava-me a rodos por entre os arvoredos da imaginação; ali, podia vê-lo trepar escadas à apanha da fruta mais madura, envolvendo os dedos polpudos em torno das bochechas firmes e arredondadas de cada damasco; e enquanto discorria, todo bazófias de sabedor, sobre as características, informações nutricionais e benefícios à saúde dos seus “beautiful apricots”, os meus olhos passavam em revista as letras de Aciman: “The Latin word was praecoquum, from pre-coquere, pre-cook, to ripen early, as in ‘precocious,' meaning premature. "The Byzantines borrowed praecox, and it became prekokkia or berikokki, which is finally how the Arabs must have inherited it as al-birquq", e demorando nele um sorriso lânguido de entretido com a charada, “All I kept thinking of was apricock precock, precock apricock”. Pelas janelas, dilatava-se-me aos olhos o Vale da Imaginação inteiro, também chamado Devrent ou Vale Cor de Rosa, com as suas fálicas estruturas de pedra, evocativas das ilustrações de Ian Beck em «The Joy of Gay Sex», a que se seguiu uma rápida paragem por Baglidere Vale e, por último, o vale dos Monges, na Estrada para Zelve. O nome vem de alguns cones escavados em tufos calcários que ali se destacam; alguns deles separam-se noutros mais pequenos nas secções superiores, onde, outrora, os estilitas e os eremitas viviam. Este vale, qualquer guia o dirá, contém algumas das mais fascinantes chaminés-de-fadas da Capadócia, com cumes de rocha duplos e triplos. De volta à estrada, ficaram para trás as fantasias de Devrent, e rumava agora de regresso ao Kaya. A despedida foi-me deliciosamente tristonha. À saída do shuttle, depois de aliciar cada tripulante com uma visita a Portugal, despedi-me de Hilal com um abraço, e segui para o hotel. O mais que se passou seguiu em rapidez de bala; um novo autocarro entregou-me a Kayseri, de onde segui para Gökçen e daqui, para Istambul. Depois dos abraços de Sedef e Mesut, ao cair no sofá, adormeci de sorriso aberto, sem sonho mais vívido do que o dos últimos dias…

Quando cheguei a Portugal, ao contrário do que sucedera pós-Grécia, nenhuma nostalgia maior me abateu o espírito. Ao invés, trazia na boca um pouco de Sezen Aksu: “Seninle baharı kutlamaya geliyorum / Başımı omzuna yaslamaya / Hayata yeniden başlamaya / Bağında, bahçende, pınarlarında / İçimi yıkamaya geliyorum…”.  Eu viera para celebrar a primavera com a vida, e queria continuar a reflorescer. Pela invocação à transcendência, pela promessa de emancipação, pela ruga do cógito perplexo, pela pirraça da criança sonhadora, pela cegueira do homem ambicioso. Vivo do arrepio da surpresa, do súbito picar da agulha, desse ‘não haver o que o fizesse previsto’. Vivo de me querer trapézios para alturas maiores, além-mapas. Vivo de avançar como for, no simples e no superlativo, na olímpica braveza que as condicionantes do medo e do desânimo despertem em mim, até perceber a invisibilidade dos vitrais celestes, essa que por indeclarada lei ou fixo dispositivo me imponha à altura a limitação de uma alfândega. Lúcido e protestante: é assim que sou, é assim eu me quero. Para então erguer o queixo, esporear o cavalo, e irromper futuro adentro, rumo ao que Sancho perceba moinho e Quixote perceba gigante. Não mais um São Jorge de falsas glórias, não mais um eremita recolhido às chaminés-de-fadas, mas um herói de mim mesmo, decidido a deixar para trás os brinquedos da imaturidade, soltar os balões da idealização céu afora, como o fizera a desvairada Baylem pelas ruas de Kadıköy, no seu estupor de alcoólica felicidade, ageless e terrestre, de pés no chão, pois que a vida começa aos 33, e vejo agora todos os meus sonhos em fogo, de crista inchada, cobrindo como aos balões da Capadócia, o horizonte inteiro do meu futuro mais bonito...















 Carlos Marinho

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